Memórias dos Pantufinhas Emprestados
Imagem Retirada da Internet
Pedi aos meus alunos na última aula que elaborassem uma memória a propósito do discurso autobiográfico que estou a leccionar. Sugeri-lhes que fizessem um texto sobre o melhor momento das suas vidas, ou o pior, ou ainda o mais divertido. Não havia restrições, não havia limites, apenas eles, os seus sentimentos, a folha de papel e a caneta. Disse-lhes ainda que manteria sigilosos os trabalhos, se assim o desejassem. O objectivo desta actividade era fazer com que aplicassem as características que tinham aprendido sobre o texto memorialístico, entrassem nos seus corações, transmitissem os seus sentimentos e analisassem a importância do acontecimento escolhido nas suas vidas. Nada me preparou para o que iria ler a seguir… Levei os trabalhos para casa e li aqueles que diziam “confidencial”. Ainda me custa a acreditar no que li… Os meus Pantufinhas Emprestados, apesar de terem acabado de entrar na adolescência, são em grande número marcados pelo sofrimento (que eu desconhecia por completo) e têm uma alma extraordinariamente sensível (mas isso eu já sabia). Alguns deles exorcizaram os seus maiores desgostos de uma forma que nunca me tinha sido dada a ler. Estes miúdos desabafaram sobre a morte de alguém que lhes foi muito querido e sobre doenças que teimam assombrar os seus lares. Uns relataram a tristeza que sentiram quando os pais se divorciaram e que também os invadiu quando voltaram a constituir uma nova família. Outros descreveram os maus tratos a que foram sujeitos por parte dos progenitores, e a vida familiar marcada pela violência doméstica, pelas agressões e espancamentos que vitimam as mães. A Matilde recordou episódios em que o pai espancava mãe na presença dos filhos, e quando os seus ataques de loucura eram intensos, acabava também por estender a violência a ela e aos irmãos. Li uma história de uma aluna que recordou uma situação vivida aos 5 anos quando assistiu ao abuso sexual de uma outra criança, que na sequência desse acto foi encontrada morta. Fiquei com o coração apertado de tantas desgraças que li. Na aula de hoje era suposto eu ler os trabalhos, mas apenas dos alunos cujos textos não fossem “confidenciais”. Tencionava corrigi-los a nível da forma e do conteúdo e tecer considerações sobre os aspectos positivos e aqueles que precisavam ser melhorados. A turma estava muito receptiva à actividade, as memórias que ia lendo falavam dos mais variados assuntos: as Verões inesquecíveis que já tinham vivido, a cumplicidade com os amigos, as tropelias da infância, a primeira bicicleta, o primeiro beijo. No meio dos papéis surgiu-me o trabalho da Teresa cujo texto me fizera chorar na noite anterior e informei os colegas que não o iria apresentar. Apesar do “confidencial” escrito na sua folha de papel, a aluna pediu-me para o ler. Senti a voz a abandonar-me e o fio que restou a tremer. Lentamente começo a leitura da memória do funeral da sua mãe: o som do rebate dos sinos, a cova escura para receber o seu corpo, o choro de desespero dos familiares mais próximos. Doeu-me ler a tristeza que sentia por perder a mãe, mas também a amargura por perder a juventude em prol do apoio que tem de dar ao pai e aos irmãos. A Teresa cuida da casa e da família, herdou da mãe a responsabilidade de dar sentido e continuidade à vida daqueles que a rodeiam. Em plena aula, as lágrimas desceram silenciosas pelo meu rosto… não as consegui esconder. Depois disto, também o Lourenço me pediu para ler o seu texto. Em duas tristes páginas este aluno descreve a primeira coisa que faz ao acordar - beijar a fotografia que se encontra perto da cama. O rosto que recebe o beijo é o da sua mãe também falecida. Linha a linha descreve a forma como recebeu a notícia, a falta que a presença materna lhe faz, as saudades que sente. «-Como vou crescer sem o seu abraço, sem os seus beijos sem os miminhos da minha mãe?» perguntava ele em pequenito. Termina com a ideia que é nos sonhos que a encontra e que a sente mais próxima. As lágrimas continuavam a deslizar pelo meu rosto e aquele texto singelo contagiou toda a turma, não só o Lourenço chorava, como a grande maioria dos seus amigos se emocionaram com a descrição da sua dor. Um outro trabalho que me tocou profundamente foi o do Alberto que explicava a forma como a Ritalina alterou a sua vida, lembrava-se das alucinações que sentiu aquando da primeira toma, da estranheza de emoções que o medicamento lhe desencadeou. O que mais me sensibilizou naquela leitura foi o facto de ele reflectir sobre o facto de se sentir viciado: a ressaca quando não a toma, o corpo a acusar a necessidade e a pedir-lhe mais. Interrogava-se sobre se deveria ou não continuar medicado, se não lhe estaria a fazer mais mal que bem, se não seria melhor procurar noutro sentido a solução para a agitação do seu corpo e da sua mente. Quando a campainha tocou, tinha o coração apertado mas transbordante de afecto por estes Pantufinhas Emprestados que crescem cada vez mais infelizes e sem um farol que os guie. No livro das minhas memórias também fica registada esta aula, em que estivemos tão próximos. Oxalá daqui a uns anos também eu faça parte das memórias deles, e que sejam boas memórias. É isto que sou, é isto que faço. Ser professora faz parte de mim, da minha alma, da minha essência.
(todos os nomes utilizados no post são fictícios)
How Could an Angel Break My Heart - Toni Braxton