Como foi que a vida te tornou tão amarga, tão fria? Em que momento os teus olhos perderam o brilho, o teu coração congelou e as tuas palavras se tornaram uma espada afiada? Ainda me lembro de ti… outrora quando o teu cabelo ainda dançava ao ritmo do vento, quando os teus olhos brilhavam e iluminavam tudo e todos à tua volta. Há muito, muito tempo, já se ouviu melodia na tua voz, já houve açúcar caramelizado nas tuas palavras. Um dia já te reconheci valores de uma amiga verdadeira, já foste uma profissional brilhante, um ser humano muito especial. A culpa é das saudades dizem uns, a culpa é do amor dizem as amigas, a culpa é dele diz a família… a culpa é da mulher dele… dizes tu. Ninguém escolhe quem ama, porque ama, ou quando deixará de amar, mas a vida encurralou-te num triângulo das bermudas amoroso que lentamente te tem vindo a destruir. Não duvido que te tenha amado, sei o quanto ainda o amas, vivi de perto os momentos de felicidade que partilharam, a cumplicidade que desenvolveram, a comunhão das vossas almas. Mas também conheci de perto a dor provocada pelo abandono, a frustração de um sonho que ficou por viver, o desespero de um coração ferido que sucederam ao regresso ao lar pseudo-perfeito, à esposa pseudo-vitimizada, aos filhos pseudo-traumatizados. O que esse amor fez contigo… não te reconheço… Passas os dias a rebobinar a cassete dessa relação que só te fez mal. Sucedem-se horas a ouvir as vossas músicas, a ver as vossas fotografias, a tocar naqueles objectos… serves-te de qualquer coisa que possa ferir com mais intensidade, esse teu coração. Que desperdício de vida! Quero de volta a amiga genuína, os teus filhos querem de volta a mãe carinhosa, a tua família quer de volta o teu sorriso, o teu trabalho quer a tua dedicação. Onde estás tu? Que entidade é essa que se apossou de ti como um espectro e não te deixa ser feliz, não te deixa viver? O amor é o mais perigoso sentimento que podemos viver. Quando se vira do avesso, se não formos fortes e sensatas o suficiente, destrói-nos a essência. Corrói tudo de bom que existe à nossa volta, deixa-nos cegas para tantas manifestações de afecto que gravitam à nossa volta, pois só temos olhos para um amor que se foi, para um amor que não vai voltar, para um amor que fechou aquilo que fomos e o que viveu connosco numa caixa… e atirou a chave ao mar.
Às vezes não sei o que hei-de fazer com a vida, vejo os dias sucederem-se num comboio estúpido e sem estações conduzido por um maquinista louco que não faz a mínima ideia onde acaba a linha e o pior é que nem quer saber. O comboio desliza sobre os carris cada vez mais depressa como se a qualquer instante perdesse a aderência e descarrilasse e então imagino as carruagens tombadas com as vísceras das minhas memórias espalhadas por todo o lado, a vida desmantelada no que já foi uma experiência rica e cheia, e que agora não vale nada.
Às vezes é preciso aprender a perder, a ouvir e não responder, a falar sem nada dizer, a esconder o que mais queremos mostrar, dar sem receber, sem cobrar, sem reclamar. Às vezes, é preciso partir antes do tempo, dizer aquilo que mais se teme dizer, arrumar a casa e a cabeça, limpar a alma. Às vezes, mais vale desistir do que insistir, esquecer do que querer. No ar ficará para sempre a dúvida se fizemos bem, mas pelo menos temos a paz de ter feito aquilo que devia ser feito, somos outra vez donos da nossa vida. Às vezes, é preciso abrir a janela e jogar tudo borda fora, queimar cartas e fotografias, esquecer a voz e o cheiro, as mãos e a cor da pele, apagar a memória sem medo de a perder para sempre, esquecer tudo, cada momento, cada minuto, cada passo e cada palavra, cada promessa e cada desilusão, atirar com tudo para dentro de uma gaveta e deitar fora a chave. Porque quem parte é quem sabe para onde vai, quem escolhe o seu caminho, mesmo que não haja caminho, porque o caminho se faz a andar. O sol, o vento o céu e o cheiro do mar são os nossos guias, a única companhia, a certeza que fizemos bem e que não podia ser de outra maneira. Quem fica, fica a ver, a pensar, a meditar, a lembrar. Até se conformar e um dia então, esquecer.
Não posso negar o que vi, o que cheirei, o que senti, o que amei. Não posso negar que fui feliz, se fecho os olhos e sinto ainda todos os instantes felizes. Não, não posso negar que atravessei rios contigo, que te ensinei o nome das estrelas, que ouvimos juntos os pássaros e o vento nas árvores, que caminhei pelas ruas de mãos dadas contigo e que houve outros momentos que não foram tão felizes (…) mas havia uma luz ao fundo e essa luz indicava o caminho. Enquanto me lembrar estarei vivo e, vivendo, não deixarei morrer quem caminhou comigo, ao longo do caminho.
Não Te Deixarei Morrer, David Crockett, Miguel Sousa Tavares
Não, não tentes apagar-me da tua vida porque durante muito tempo no teu coração, eu vou viver. Aqueles detalhes, tão pequenos e insignificantes de nós dois vão persistir, resistir, porque são coisas muito grandes para esquecer. E a cada passo que deres, nessa tua vida tonta, agitada, vão estar presentes… vais ver. O olhar meigo, o sorriso, as coxas macias e acetinadas, a voz embargada, o corpo, a alma, ou qualquer outra coisa assim, imediatamente, vão fazer-te… lembrar de mim. Calculo que outra mulher deva estar a sussurrar ao teu ouvido, palavras de amor como eu sussurrei, mas eu duvido… duvido que ela tenha tanto amor e até as metáforas do meu português ruim, e em todos esses momentos…vais-te lembrar de mim. À noite, quando a lua e as estrelas entrarem pela janela e envolverem o silêncio do teu quarto, antes de dormir procuras a minha imagem. Mas da moldura não sou eu quem te sorri, apesar disso, ouves as minhas gargalhadas mesmo assim, e tudo isto vai fazer-te… lembrar de mim. Se os dedos de alguém tocarem o teu corpo como eu... não digas nada. Quando a boca que te saborear o sal da pele, não for a minha... nada digas. Cuidado…. para não gemeres o meu nome baixinho, sem querer, à pessoa errada… Pensando que é amor o que sentes nesse instante, desesperado, tentas até o fim… e até nesse momento mágico… vais-te lembrar de mim. Eu sei que todos estes detalhes vão evaporar-se na longa estrada. O tempo tem o dom de transformar um grande amor em quase nada. Mas também é mais um detalhe, uma história de amor como a nossa, não vai morrer assim… por isso, de vez em quando… vais-te lembrar de mim.
Não dormes comigo à noite quando eu me volto e torno a voltar na cama, buscando um sono que te apague de mim, que afaste as perguntas que então me devoram «Onde estará ele agora? Estará sozinho em casa, sofrendo por minha causa? Estará acompanhado, dando a outra mulher o que eu já não tenho dele? Como fará ele amor com outra mulher? Como o pode?» Como farás amor, meu amor? Farás como eu faço de olhos fechados, de boca fechada, breve e silenciosamente, como se roubasse uma casa na escuridão da noite? Tentarás como eu substituir a paixão e o excesso pela ternura e pelo consentimento? Com essas a quem chamas amigas, farás amor como um amigo? E, por vezes, farás amor sozinho, como eu faço pensando em ti, descendo a mão devagar, devagar, devagar, com todo o resto da vida à minha frente? E quem dormirá ao teu lado de noite? (…) E que sabes tu do meu sono? Que imaginas tu das minhas noites? Saberás tu que as mais felizes são aquelas em que chego à cama e adormeço, sem sequer me lembrar de ti, nem querer, como na música de Simone “eu não me lembro, nem esqueço – adormeço”.
Não Te Deixarei Morrer, David Crockett, Miguel Sousa Tavares
E lembrei-me de ti, com ternura (ou seria paixão?). A palma das tuas mãos, a pele dos teus pulsos, os dedos esguios e longos, os dentes brancos num sorriso meio tímido, meio atrevido, o teu riso, o teu humor, a tua inteligência cristalina. Pensei telefonar-te, mas estas coisas não se dizem por telefone. Guardei-te para mais tarde, e para quando os teus olhos pousassem sobre mim, para quando a tua mão me limpasse o suor das testa, a tua boca limpasse os vestígios de sal da minha pele. Em vão, como vês, me esforcei por não me distrair. Para passar por ti como se passa por um episódio, por um acidente à beira da estrada, por uma ilusão de água num mar sem fim de areia. Eu queria só a solidão da solidão, o silêncio submerso dos dias vazios e sem destino, a consistência da água e a evidência das pedras. Eu queria um mundo sem ti nem ninguém mais, uma vida - tão merecida - feita de egoísmo e de instantes impartilháveis. Mas tu és como a anémona que segue a corrente que passa, és a lapa presa à rocha, o sulco na areia durante a maré vazia que indica o caminho de regresso ao mar, tu és a densidade da água dentro da qual eu me reencontro e me reconstruo.
Não Te Deixarei Morrer, David Crockett, Miguel Sousa Tavares
“Deve ser horrível ser-se deixada por ti!” Albert nunca mais esqueceu quando é que Marta tinha dito essa frase. Estavam deitados na cama nus, era fim de tarde e tinham acabado de fazer amor. Um silêncio instalara-se entre eles e velava sobre os seus corpos transpirados, mas era tudo menos um silêncio de estranhos. Pelo contrário: era tão familiar, tão íntimo, tão intenso, que chegava a doer de puro prazer. Era mais íntimo do que a própria nudez, mais devassante do que tudo o resto que faziam na cama. E, então, Marta dissera aquela frase, sem mais nem menos, assim de repente. Ele ficou calado, ela voltou a calar-se, nada mais disse e ficou outra vez em silêncio. Ele lembrava-se de ter chegado a pensar “Posso dizer o mesmo”, mas nada disse. Para quê? Sabia que Marta tinha razão, sabia que era por causa do que aquela frase encerrava que um dia Marta o deixaria – ela, antes dele. Essa frase, essa terrível defesa, ele passeara-a depois, ao longo dos anos, ao longo das dezenas de outros corpos, de sentimentos que afinal não passam de sensações e onde tudo é desesperadamente contraditório: porque não te amo, tenho este corpo para te oferecer, porque te amo, fujo e desapareço. E, porque desapareço, não te esqueço, porque essa é a minha forma de te amar – tudo o resto é ainda mais e mais sofrimento.
Não Te Deixarei Morrer, David Crockett, Miguel Sousa Tavares
Albert nunca recuperou a ausência física de Marta. Mas guardou os silêncios e reconstruiu-os. Em cada silêncio da sua vida, falava com ela – como fazia dantes, deitado ao seu lado, falando em silêncio, numa nudez absoluta, sem segredos nem medos. Porque nada é mais íntimo e mais indestrutível do que o silêncio partilhado. O silêncio fica porque nunca mente, porque é tão íntimo que não pode ser representado, é tão envolvente que não pode ser rasgado.
Conheço bem Albert e Marta sei o quanto se amam em silêncio e à distância e não sei dizer como acabará a sua história. Ele destrói-se, ela defende-se. Cada um deles faz por desejar ou fingir desejar a salvação própria, mas, acima de tudo, teme a salvação do outro. O silêncio é o que lhes resta, o que os une, uma finíssima película de tempo suspenso, para além da qual não há nada mais do que a escuridão dos abismos. E, por isso, nenhum deles ousa qualquer palavra, qualquer gesto, qualquer coisa que possa romper esse ténue fio que os prende à eternidade.
É uma história triste e sem fim feliz à vista. Conto-a, porque me parece que ela encerra uma lição útil: nunca devemos amar em silêncio, nada é mais perigoso do que dividir com outrem os pensamentos vividos em silêncio.
Não Te Deixarei Morrer, David Crockett, Miguel Sousa Tavares