Pedi aos meus alunos na última aula que elaborassem uma memória a propósito do discurso autobiográfico que estou a leccionar. Sugeri-lhes que fizessem um texto sobre o melhor momento das suas vidas, ou o pior, ou ainda o mais divertido. Não havia restrições, não havia limites, apenas eles, os seus sentimentos, a folha de papel e a caneta. Disse-lhes ainda que manteria sigilosos os trabalhos, se assim o desejassem. O objectivo desta actividade era fazer com que aplicassem as características que tinham aprendido sobre o texto memorialístico, entrassem nos seus corações, transmitissem os seus sentimentos e analisassem a importância do acontecimento escolhido nas suas vidas. Nada me preparou para o que iria ler a seguir… Levei os trabalhos para casa e li aqueles que diziam “confidencial”. Ainda me custa a acreditar no que li… Os meus Pantufinhas Emprestados, apesar de terem acabado de entrar na adolescência, são em grande número marcados pelo sofrimento (que eu desconhecia por completo) e têm uma alma extraordinariamente sensível (mas isso eu já sabia). Alguns deles exorcizaram os seus maiores desgostos de uma forma que nunca me tinha sido dada a ler. Estes miúdos desabafaram sobre a morte de alguém que lhes foi muito querido e sobre doenças que teimam assombrar os seus lares. Uns relataram a tristeza que sentiram quando os pais se divorciaram e que também os invadiu quando voltaram a constituir uma nova família. Outros descreveram os maus tratos a que foram sujeitos por parte dos progenitores, e a vida familiar marcada pela violência doméstica, pelas agressões e espancamentos que vitimam as mães. A Matilde recordou episódios em que o pai espancava mãe na presença dos filhos, e quando os seus ataques de loucura eram intensos, acabava também por estender a violência a ela e aos irmãos. Li uma história de uma aluna que recordou uma situação vivida aos 5 anos quando assistiu ao abuso sexual de uma outra criança, que na sequência desse acto foi encontrada morta. Fiquei com o coração apertado de tantas desgraças que li. Na aula de hoje era suposto eu ler os trabalhos, mas apenas dos alunos cujos textos não fossem “confidenciais”. Tencionava corrigi-los a nível da forma e do conteúdo e tecer considerações sobre os aspectos positivos e aqueles que precisavam ser melhorados. A turma estava muito receptiva à actividade, as memórias que ia lendo falavam dos mais variados assuntos: as Verões inesquecíveis que já tinham vivido, a cumplicidade com os amigos, as tropelias da infância, a primeira bicicleta, o primeiro beijo. No meio dos papéis surgiu-me o trabalho da Teresa cujo texto me fizera chorar na noite anterior e informei os colegas que não o iria apresentar. Apesar do “confidencial” escrito na sua folha de papel, a aluna pediu-me para o ler. Senti a voz a abandonar-me e o fio que restou a tremer. Lentamente começo a leitura da memória do funeral da sua mãe: o som do rebate dos sinos, a cova escura para receber o seu corpo, o choro de desespero dos familiares mais próximos. Doeu-me ler a tristeza que sentia por perder a mãe, mas também a amargura por perder a juventude em prol do apoio que tem de dar ao pai e aos irmãos. A Teresa cuida da casa e da família, herdou da mãe a responsabilidade de dar sentido e continuidade à vida daqueles que a rodeiam. Em plena aula, as lágrimas desceram silenciosas pelo meu rosto… não as consegui esconder. Depois disto, também o Lourenço me pediu para ler o seu texto. Em duas tristes páginas este aluno descreve a primeira coisa que faz ao acordar - beijar a fotografia que se encontra perto da cama. O rosto que recebe o beijo é o da sua mãe também falecida. Linha a linha descreve a forma como recebeu a notícia, a falta que a presença materna lhe faz, as saudades que sente. «-Como vou crescer sem o seu abraço, sem os seus beijos sem os miminhos da minha mãe?» perguntava ele em pequenito. Termina com a ideia que é nos sonhos que a encontra e que a sente mais próxima. As lágrimas continuavam a deslizar pelo meu rosto e aquele texto singelo contagiou toda a turma, não só o Lourenço chorava, como a grande maioria dos seus amigos se emocionaram com a descrição da sua dor. Um outro trabalho que me tocou profundamente foi o do Alberto que explicava a forma como a Ritalina alterou a sua vida, lembrava-se das alucinações que sentiu aquando da primeira toma, da estranheza de emoções que o medicamento lhe desencadeou. O que mais me sensibilizou naquela leitura foi o facto de ele reflectir sobre o facto de se sentir viciado: a ressaca quando não a toma, o corpo a acusar a necessidade e a pedir-lhe mais. Interrogava-se sobre se deveria ou não continuar medicado, se não lhe estaria a fazer mais mal que bem, se não seria melhor procurar noutro sentido a solução para a agitação do seu corpo e da sua mente. Quando a campainha tocou, tinha o coração apertado mas transbordante de afecto por estes Pantufinhas Emprestados que crescem cada vez mais infelizes e sem um farol que os guie. No livro das minhas memórias também fica registada esta aula, em que estivemos tão próximos. Oxalá daqui a uns anos também eu faça parte das memórias deles, e que sejam boas memórias. É isto que sou, é isto que faço. Ser professora faz parte de mim, da minha alma, da minha essência.
Faz frio. A neve bate nas vidraças anunciando que o Inverno chegou e que veio para ficar. Encho a banheira com água a ferver, perfumo-a com sais especiais e mergulho. São tão poucos os momentos de silêncio, são tão escassos os momentos de tranquilidade e naquela água fumegante há todo um Universo de energias a recuperar. Invade-me uma sensação de calor e prazer, toda a minha fadiga se dissolve naquela temperatura, todo o meu corpo agradece o conforto. No leitor de CD toca Sting confirmando aquilo que há muito tempo sei… How fragile are we are. Saio da banheira e mimo o meu corpo com óleo de canela previamente aquecido, um aroma adocicado envolve todo o quarto. Massajo cada centímetro de pele, hidrato um pouco da minha auto-estima. Esqueço as imperfeições, ignoro os centímetros a mais, esqueço os centímetros a menos e valorizo o meu corpo naquilo que é… naquilo que eu sou. Faz frio. Aqueço o meu chá verde com jasmim, coloco as almofadas no chão e meto mais lenha na lareira, deixo que a manta de pêlo de ovelha me abrace, fecho os olhos e agradeço… incendeiam-se na lareira os episódios da minha vida: a infância, a adolescência, os amigos de outrora, os amigos de hoje, os amigos de sempre. A família mais próxima, aqueles que já partiram e aqueles que mesmo longe, estão sempre perto. Os filhos… o nascimento, o primeiro sorriso, o primeiro abraço, o primeiro «mamã». Faz frio… o meu coração vai aquecendo ao lembrar os degraus que subi, os patamares que alcancei, os trambolhões que dei. Curiosamente, a cada ferida lambi o sangue, a cada nódoa negra espalhei a pomada, a cada queda ergui-me novamente. Não sei onde me agarrei, de que muleta me servi, só sei que encontrei energia para olhar em frente e continuar a subir. Faz frio… não interessa a temperatura que faz lá fora, interessa o que eu sinto cá dentro. Fecho os olhos… o lume apaga-se suavemente… o chá arrefece… adormeço…
Setembro sabe a fim de férias, últimos banhos de mar, último toque na areia, últimos caracóis na esplanada e o último adeus aos amores de Verão. Sabe a início de aulas, a alvoroço de canetas cadernos, livros e mochilas. Setembro são saudades do Outono: das túnicas brancas de manga comprida, de écharpes à volta do pescoço, de camisolas de gola alta, de botas de cano alto e salto fino ressuscitadas do armário. Setembro tem gosto de torradinhas onde a manteiga escorre, de cacau quente num fim de tarde, de canecas de chá verde com versos de Fernando Pessoa. Setembro cheira às primeiras chuvas que deixam no ar o doce aroma a terra molhada, que re-energiza não só o solo mas também a vida. Setembro tem o gosto dos dióspiros do Sr. Franco, (deliciosos, sumarentos, vermelhinhos), das uvas douradas da D. Emília, das broas de canela da D. Maria Antónia, dos figos e nozes do Raul, do moscatel do tio António, dos biscoitos de manteiga da avó Maria. Setembro sabe ainda à manta creme de quadradinhos castanhos na qual me enrolo no sofá e me perco nas páginas de um livro, ou numa caixa de chocolate quando a tristeza aperta. Setembro tem um toque de manhãs frias e fins de dia onde anoitece mais cedo, tem sabor, a filmes alugados e baldes de pipocas no chão da sala, a cobertores a mais na cama, tem gosto de preguiça no leito morno das manhãs de Domingo. Setembro… sabe a ti!
Sophia era uma mulher como tantas outras, tinha uma personalidade interessante, estava longe de ser detentora de uma beleza esfuziante, mas era sedutora com o seu longo cabelo dourado pelas madeixas, os olhos doces, o rosto branco trigueiro e um corpo elegante que não acusava a maternidade de duas filhas.
A vida de Sophia dividia-se entre as exigências do seu emprego numa fábrica (sobrevoada pelo fantasma da falência), os afazeres domésticos e o apoio à família. Estava casada com Luís há dez anos, aparentemente eram um casal feliz, cúmplices na sua relação, que parecia ideal, pelo menos, a quem a via de fora. Luís era empregado bancário e trabalhava o mais que podia para ascender dentro da agência, nunca tinha horas para chegar e tentava a todo o custo mostrar-se disponível para agradar ao Gerente, pois sabia que a sua avaliação dependia do seu parecer. Confiava na mulher todas as tarefas ligadas à casa e à educação das filhas, confiava ainda na sua capacidade de organização e achava-a uma verdadeira Fada do Lar.
Numa cinzenta manhã de Novembro, Luís perdeu toda a doçura do rapazinho de liceu com quem Sophia tinha casado, ao tomar conhecimento que a promoção para a qual trabalhara durante tanto tempo, tinha sido atribuída a um colega seu, recentemente chegado à agência. Quando saiu, no final do dia, decidiu ir beber um whiskie com uns amigos, precisava esquecer aquele episódio, queria abstrair-se daquela rejeição e não lhe apetecia voltar para casa e ouvir as gargalhadas felizes das filhas. Incapaz de lidar com aquela frustração resolveu afogá-la numa garrafa de Cardhu.
Esta foi a primeira de muitas fugas, na direcção do bar, sucederam-se outras, e Luís começou a beber para esquecer. Gradualmente, foi-se afastando cada vez mais da família e começou a marcar presença pelos gritos com as filhas e pela boca a saber a Cardhu que, à força, começou a dar a provar a Sophia.
A primeira vez que Luís entrou no quarto e a acordou com a violência e o cheiro nauseabundo das noites devassas dos bares e discotecas que frequentava, com as mãos a cheirar a tabaco, a boca a saber a esmalte e um instinto animal ávido de sexo, Sophia sentiu que todo o seumundo ruía, sentiu-se como um criança pequena que na escuridão da noite é abusada pelo familiar mais velho, nojento, e não tem coragem de protestar porque nem percebeu muito bem o que é que aconteceu.
Luís não quis saber do seu desconforto, não ouviu o seu «NÃO», não percebeu o nojo que lhe sentiu. No dia seguinte acordou com um trago amargo da boca, da ressaca, com as lágrimas silenciosas de Sophia e com os sorrisos travessos, a seu ver insuportáveis, de duas crianças pequenas.
Sophia passou o dia a tentar negar o que acontecera, tentou desculpar a situação, porque Luís sempre fora um marido carinhoso e aquele episódio só podia ser explicado pela situação profissional, difícil, que estava a viver.
Tentava assim enganar-se a si própria, mas as imagens perversas, dolorosas da noite anterior, teimavam em não a abandonar, algo lhe dizia que o seu templo tinha sido profanado, e ainda por cima, por um homem que lhe jurara protecção e amor, e que era o pai das suas duas filhas.
Luís voltou a sair com os amigos, voltou a esquecer as mágoas, e a comemorar as alegrias com uma garrafa de whiskie e continuou surdo ao «Não» da mulher. A única diferença, é que era tudo muito mais violento, muito mais sofrido, porque a cada movimento o desespero, o medo de Sophia aumentava porque sabia exactamente o que vinha a seguir. Quem era aquele homem que estava ali?
Quando finalmente se libertava, Sophia arrastava-se para a banheira, sentava-se no chão e deixava a água correr-lhe em cima, contrastando assim, com as lágrimas que lhe corriam cara abaixo, num jacto intenso de vergonha e dor. Sentia-se suja, imunda. Água nenhuma conseguia limpar as manchas da sua alma e apagar a dor que tinha dentro do peito e no seu corpo.
Na manhã seguinte, ao ver o seu rosto sovado pelas lágrimas e pelas marcas de uma noite em branco, Luís pedia desculpa, chorava envergonhado e prometia que não voltaria a beber.
Passados uns dias voltava tudo ao mesmo. No dia em que Sophia ousou empurrá-lo e dizer-lhe aos gritos que não queria mais que ele lhe tocasse, sentiu na candura do seu rosto a força da mão de Luís. Prostrada no chão Sophia não conseguiu libertar-se daquele monstro que desceu sobre ela, insensível aos seus gritos, às suas lágrimas, aos seus pedidos de «Por favor, pára!», ao desespero do seu «NÃO!!!!». De nada lhe valeu o choro das filhas, que do lado de fora da porta do quarto, chamavam por ela num pranto quase tão desesperado como o seu. E a cena repetiu-se – aqueles beijos vorazes com um hálito insuportável, aquela mão enorme, rude que lhe puxava os cabelos, aquela outra mão violenta que a obrigava a abrir as pernas e lhe provocava uma imensa dor e o seu sexo viril que entrava dentro do seu corpo, rasgando-a ao meio, numa sensação de profunda agonia e dor.
Novamente sentada na banheira, Sophia tentava juntar os cacos do seu ser, consciencializam-se que aquele filme de terror, jamais chegaria ao fim. E pensava para consigo, o que dói mais na alma de uma mulher – a violação de um estranho, que a arrasta para um beco escuro, a toca e desaparece para todo o sempre, ou a violação caseira, o abuso de quem se amou, em quem se confiou e que um dia, profana de forma ímpia e impiedosa toda a sua alma?
Sophia aguentou ainda esta situação durante mais alguns meses, e teria continuado a aguentar a vida toda, afinal se a fábrica falisse para onde iria trabalhar aos 42 anos? Como iria sustentar as filhas?
Teria continuado a aguentar se a violência de Luís, continuasse a recair exclusivamente sobre si, mas um dia o marido resolveu estender a sua monstruosidade à filha mais velha, só porque esta deixou cair o comando da televisão, e quando Sophia se apercebeu também a sua menina, de apenas dez anos, era vítima das frustrações e da loucura do pai.
Naquela noite, enquanto Luís dormia, Sophia decidiu fugir de casa levando consigo apenas o que tinha de mais valioso. Acordou a custo as filhas e levou-as até casa da mãe. Pela primeira vez abriu-lhe o seu coração, contou-lhe o inferno que era a sua vida, os seus medos, as humilhações, as agressões e a violação de um homem que um dia a amara. Pediu-lhe ajuda, já, não aguentava mais viver assim, precisava de recomeçar uma vida nova, bem longe dali, com as filhas.
Ainda o sol não fazia incidir os seus raios sobre ela, e já Sophia estava a bordo do primeiro avião rumo a Luanda, onde esperava ser auxiliada por uma tia que ali vivia há já alguns anos. Durante o voo, Sophia rebobinou a cassete da sua vida e lamentou-se, com um misto de dor e desilusão, daquilo em que a sua vida se transformara, não percebeu onde é que perdeu o fio à meada da sua existência.
Mas decidiu que não iria ficar ali a lamentar-se. O momento agora era de renovação, transformação. Longe de Luís, o qual jamais saberia do seu paradeiro e o das suas filhas, Sophia tinha decidido renascer naquele dia e quando saísse do avião seria uma mulher nova, sem identidade e sem História.
Vagueava pela marginal quando os meus olhos repararam em ti. Estavas sentado à beira mar, perdido nesse teu mundo que fechas a sete chaves e onde não deixas ninguém entrar. (Pensarias em mim?) Lentamente fui ao teu encontro. Naqueles metros de areia que nos separavam revivi toda a nossa história. Todos os altos e baixos, os sorrisos e as lágrimas. Parei ao teu lado ignorando a tua presença e permiti aos meus olhos um mergulho na imensidão do mar. Senti o teu olhar incrédulo, as dúvidas que te assolaram naquele instante, as perguntas que calaste e as emoções que enterraste nos grãos de areia. Dei um passo e coloquei-me à tua frente. Nada disse, nada ouvi. Lentamente… desapertei, uma a uma, as sandálias e deixei-as cair. Levei as mãos ao pescoço e soltei o nó do meu vestido que desmaiou aos teus pés, desvendando-te o meu corpo alvo. Retirei o gancho do cabelo e deixei que os caracóis caíssem em cascata sobre os meus ombros nus, sobre o meu peito. A nossa troca de olhares era cada vez mais intensa, os nossos olhos diziam por nós tudo o que a boca calava, tudo o que o corpo pedia. Virei-me de costas e dirigi-me à beira mar. «-Que noite mágica.» (Recordo-me de ter pensado). Na água o reflexo de uma Lua Nova salpicada pelo brilho das estrelas. Ao meu lado a minha silhueta esguia e nua, atrás de mim, imóvel, sentado na areia… Tu. (Em que pensavas? Que desejos e imagens povoaram o teu pensamento?) Mergulhei. Senti o mar gelado a arrepiar-me a pele mas foi uma sensação breve porque naquele instante os teus lábios desprenderam-se da tua boca e vieram saborear o sal do meu corpo, aquecendo-o rapidamente. As tuas mãos, soltaram-se dos teus braços e vieram afagar o meu corpo molhado de mar e de amor. A tua alma, desprendeu-se do teu corpo e mergulhou em mim num momento indescritível de prazer. Depois, cheia de vida e de amor, renovada pelo mar e por ti, saí devagarinho…deixei que as ondas me levassem carinhosamente à tua presença. Novamente ali estava eu, nua à tua frente. Desta vez, dos fios do meu cabelo soltavam-se gotas de cristal que caíam sobre ti e te arrefeciam os desejos e o meu corpo pingava de amor por ti. Vesti-me em silêncio e a roupa molhada colou-se ao meu corpo numa intimidade que deveria ser tua. Coloquei-te docemente nos lábios um beijo salgado e fui-me embora… feliz… convicta de que o nosso amor é alquímico e que o meu mergulho no mar foi mais uma prova de que posso fazer amor contigo… sem nunca te tocar.
Imagem: Campanha Publicitária da Luta Contra a Sida
«-Posso levar-te a casa?» Ouvi… e senti-me gelar. Olhei para o condutor do carro que parou ao meu lado e lá estavas tu, com o teu ar descontraído, como se ainda ontem nos tivéssemos visto. Não foi ontem… mas parece que foi… (tal é a tua presença em mim). Passou muito tempo desde a última vez que te vi, que te falei, que te toquei. Entrei. Dei-te um beijo tímido no rosto e rapidamente uma avalanche de recordações me envolveu. Continuas a usar o mesmo perfume (aquele aroma tão quente que sempre me deixou em brasa).«-Eu levo-te a casa», ouvi ao longe. A sensação que tive é que desde que entrei no teu carro, entrei noutra dimensão. Falavas de trivialidades, do que tinha sido a tua vida desde que nos separámos… mas eu nada ouvia, nada dizia… apenas sentia frio. Tocaste-me no joelho, quando meteste a mudança, e então acordei. Pediste desculpa, com um sorriso maroto, como se eu não soubesse que aquele “inocente” toque havia sido propositado. Olhei à minha volta, e embora estivesse bem longe de casa, percebi que aquele caminho me era familiar e, também ele, carregado de boas recordações! E, naquela altura, tive medo… Medo do caminho, de ti, mas acima de tudo… medo de mim! «Leva-me para casa», pedi-te com a voz a tremer. Mas tu ficaste surdo ao meu pedido e lentamente acariciaste a minha perna. Seguimos em silêncio. Paraste o carro naquele lugar onde outrora tantas vezes o fizeras, e disseste baixinho «- Senti tanto a tua falta». Envolveste-me num abraço que fez cair por terra todos os meus argumentos e defesas e foi então que, finalmente, o gelo se derreteu. Não sei quanto tempo ali fiquei, aninhada no teu abraço, perdida no teu cheiro, ansiosa por me perder no teu gosto. Lentamente, olhaste-me nos olhos e um arrepio de desejo percorreu todo o meu corpo. Nunca entendi o teu magnetismo, nunca percebi esse poder que exerces sobre mim, mas, naquele instante, percebi que seria incapaz de te negar o que quer que fosse. Puxaste-me para ti, sentaste-me no teu colo e, sem nunca retirares os teus olhos dos meus, abriste lentamente o fecho do meu vestido. Desviaste o teu olhar e pousaste-o, voluptuosamente, no meu peito, dando a perceber o quanto me desejavas. Senti o calor da tua boca e estremeci de prazer. Tremulamente, deixei que também os meus dedos desapertassem os botões da tua camisa, para que pudessem acariciar o teu peito, a tua barriga… Desapertei então o botão das tuas calças e lá estava a prova inegável de que me querias tanto quanto eu te queria. Entraste em mim e, como sempre, fiquei com a certeza de que os nossos corpos foram feitos à medida um do outro. Foi então que os teus olhos voltaram a procurar os meus… e por lá ficaram… Adoro fazer amor contigo assim, num abraço único… olhos nos olhos. Não existe melhor momento de comunhão dos nossos seres.
Hoje de manhã, no duche, decidi usar aquele gel de banho maravilhoso, que só uso em ocasiões especiais, e depois pensei «- Para quê? Tu não vais saber!» Seguidamente, passei pelo corpo o creme igual ao perfume que me deixa a pele macia (pele de bebé, como tu dizes) e que intensifica o aroma, e depois pensei «- Para quê? Tu não me vais tocar!» Vesti uma lingerie sexy… aquela… a tal… e depois pensei «- Para quê? Tu não a vais despir!» Vesti um vestido curto, de cetim, aquele que dizes que retira a concentração dos meus alunos, e pensei «- Para quê? Tu não mo vais tirar!» Calcei os sapatos agulha, altos, muito altos e… sorri. Contornei os meus olhos com o lápis, delineei os meus lábios com o batom. Coloquei perfume… uma borrifadela aqui, outra borrifadela ali, e depois pensei «- Para quê? Tu não me vais cheirar!» Passei a escova pelo meu longo cabelo, de madeixas louras, e depois pensei «- Para quê? Tu não o vais afagar!» Depois de todos estes “rituais de beleza” olhei para o espelho para ver o resultado final e pensei «- Para quê? Tu olhas-me mas não me vês!» Que desperdício!!! Virei as costas, para ir trabalhar, tinha dado meia dúzia de passos, quando o meu Anjo da Guarda me deu com uma das suas asas e obrigou-me a voltar atrás, e a ir ter comigo novamente ao espelho. Fui. Olhei-me. Primeiro, superficialmente, para tentar perceber o que estava mal, e o que é que o Anjo me queria dizer. Depois… a medo… olhei-me nos olhos e percebi… «-Para quê????» Para Mim!!!! Para Mim!!! Que sou uma mulher fantástica!!!
(Dedicado a todas as mulheres fantásticas que diariamente passam por aqui e me deixam o seu carinho)
Após uma análise introspectiva, exaustiva, da minha pessoa, cheguei à brilhante conclusão que me falta um órgão vital ao meu bom funcionamento e que a Natureza se esqueceu de me providenciar. Um GPS. Tudo na minha vida seria mais fácil se este sistema de navegação tivesse sido incorporado nas profundezas do meu ser. Então vejamos: de manhã não perderia tempo a escolher aquilo que me fica menos-mal, escolheria certeira, sem os habituais «este não, porque é curto», «este não, porque é comprido», «este não, porque me faz gorda, «estas não, porque estão muito largas», «esta não, porque é muito decotada», «esta não porque… sei lá porquê». E também não ficaria com aquela cara injusta de «não tenho nada para vestir» mesmo sabendo que não cabe nem mais um par de ligas no roupeiro. Seguidamente, o meu GPS poupar-me-ia algumas arrelias, pela manhã, porque encarregar-se-ia de seleccionar, com precisão, os cereais que os pantufinhas querem comer. Quando arranjo Cérelac querem Nestum, quando arranjo Nestum, querem Estrelitas… e por aí a fora, e o mesmo aconteceria relativamente à roupa. Ao sair de casa, o meu GPS, encontraria facilmente um lugar para estacionar, sem ser preciso deixar o carro a quilómetros de distância. Ao chegar ao comboio, far-me-ia sentar, apenas ao lado de pessoas que soubessem fazer uma viagem em silêncio. Afastaria de mim aqueles parolos, armados em Dom Juan que se metem comigo, com conversas da treta e que começam por perguntar «A menina desculpe, quanto tempo falta para chegar a Oriente?», ou então, «Tem horas que me diga?». E eu, respondo, educadamente, com ar de give me a break, sem lhes dar conversa, mas mesmo assim, eles não percebem. Nas aulas accionaria o meu GPS para utilizar sempre as palavras certas, o diálogo adequado para ensinar aos meus alunos que o futuro se constrói hoje, que as coisas boas da vida não são apanhar bebedeiras descomunais, fumar ganzas, e que fazer sexo não é o mesmo que fazer amor. No final do dia, voltava a accionar o GPS, desta vez para me guiar até ti. Para me ensinar o caminho para o teu coração, para nele me instalar e nunca mais de lá sair. O GPS ensinar-me-ia a dizer as palavras certas, como te tocar, como te demonstrar aquilo que sinto, como te fazer feliz e quando sentisse que te perdias no meu amor por ti, ouviria a voz do GPS dizer“You have arrived”.
Estou farta de ti! Farta de acordar e ver logo essa tua cara imaginária, escarrapachada na minha almofada. Farta de te sentir na água e no gel que me lavam o corpo. Estou farta de te tactear no cetim do meu vestido e na pele dos meus sapatos. Estou farta de te barrar nas minhas torradas, farta de te beber no meu sumo de laranja e de te saborear no amargo do meu café. Estou tão farta de ti! Farta de entrar o carro e te ver lá dentro, de te ouvir nas músicas do meu leitor de CD, até no vermelho do semáforo vejo essa tua cara redonda. Estou farta de ti! Farta de te ver nos homens com que me cruzo, nos sorrisos com que me encanto, nos placards de publicidade, nas páginas dos jornais, nos ecrãs da TV. E quando chego ao trabalho lá estás tu nos papéis que escrevo, nos livros que leio, nas histórias que ensino. Quando o meu dia chega ao fim, persistes, insistes e não te vais embora. Vejo-te na solidão da minha noite, no vazio da minha cama, no frio dos meus lençóis. Estou cansada de te sonhar, de te esperar, de te desejar, de te querer e não te ter. Estou farta de ti… Estou farta de ti…. ESTOU FARTA DE TI!!!!
Há Mulheres sem encanto, sem beleza, sem aroma próprio, são uma espécie de Sardinheiras, crescem naturalmente sozinhas sem precisarem de grandes cuidados, a não ser aqueles que a Natureza se encarrega de providenciar. São por isso resistentes, tesas, e não se deixam destruir por qualquer intempérie. Há Mulheres que são como as Espigas, por muito que te esforces e as trates bem, são secas, altivas, desprovidas de uma manifestação de afecto. Há Mulheres que são como as Azedas, quando as vês ao longe dão-te a sensação que são amorosas e delicadas, mas quando as provas... são puro vinagre... são puro veneno. Há Mulheres que são como a Hera, trepam vertiginosamente pelos teus alicerces e quando dás por isso já te absorveram completamente a estrutura. Há ainda as Mulheres Cactos, vivem para te fazer mal, para te magoar e mesmo depois de desaparecerem da tua vida, continuam ainda a tentar espetar-te. Há Mulheres que são como os Jarros, parecem ter um espírito muito aberto, muito liberal, mas há medida que o tempo vai passando, vão-te afunilando até não conseguires respirar. Há Mulheres que são como as Margaridas, bonitas, têm uma função meramente decorativa, não dão trabalho, não cheiram bem, mas também, ninguém é perfeito. Temos ainda a Mulher Violeta, detentoras de uma beleza misteriosa, jamais as poderás possuir, porque ao arrancá-las ao habitat natural, morrem. Temos ainda a Mulher Flor-de-Laranjeira, que é casta, virgem, cândida, pura e existe apenas em algumas estufas onde os jardineiros lutam estoicamente para que não se extinga. Há Mulheres que são como os Amores-Perfeitos, mas são tão pequenas e rasteirinhas que os homens nem dão pela sua presença. Há Mulheres que são como os Lírios, apresentam uma beleza singular, têm um porte elegante, emanam um aroma envolvente, transmitem-te uma doce sensação de paz, doçura e tranquilidade, e são por isso perfeitas. Last but not the least a Mulher Malmequere, nunca sabes se-te-quer-muito, se-te-quer-pouco, ou se-não-te-quer-nada.