Imagem Retirada do Filme As Pontes de Madison County
Queridos Filhos:
Embora me sinta muito bem, acho que está na altura de pôr as minhas coisas em ordem. Há uma coisa, importante que vocês precisam de saber por isso vos escrevo esta carta.
É-me difícil escrever isto aos meus próprios filhos, mas devo fazê-lo. E se querem saber quem foi a vossa mãe com todas as partes boas e más, precisam saber o que vou contar-vos.
Como já descobriram, ele chamava-se Robert Kinkaid. Era fotógrafo, e esteve aqui em 1965 a fotografar as pontes cobertas.
Quero que saibam que amei o vosso pai de uma forma harmoniosa. Sabia-o na altura e sei-o agora. Ele foi bom para mim e deu-me dois filhos a quem adoro. Nunca o esqueçam.
Mas Robert Kinkaid foi algo totalmente diferente.
A primeira vez que o vi, foi quando ele parou a perguntar o caminho para Roseman Bridge. Vocês os três estavam na feira de Illinois. Acreditem, eu não andava em busca de nenhuma aventura. Mas olhei para ele apenas por alguns segundos e soube que o desejava, embora não tanto como cheguei a desejá-lo.
Eu sei que os filhos têm tendência a pensar nos pais como seres vagamente assexuados, por isso espero que o que vou dizer não vos choque, e certamente e espero que não destrua a recordação que vocês têm de mim.
Robert e eu passámos horas juntos na nossa velha cozinha. Conversámos e dançámos à luz das velas. E, sim, fizemos amor aí, e no quarto, e na erva da pradaria e em qualquer outro sítio que possam imaginar.
Se não tivesse sido por vocês e pelo vosso pai, teria ido para onde quer que fosse com ele. Ele pediu-me, implorou-me que o fizesse. Mas eu não o fiz, e ele era uma pessoa demasiado sensível e altruísta para interferir nas nossas vidas depois disso.
O paradoxo é que se não tivesse sido por Robert Kincaid, não sei se teria podido ficar na Quinta todos estes anos. Em quatro dias ele deu-me uma vida inteira, um universo, e deu consistência a todo o meu ser. Nunca deixei de pensar nele, nem por um momento. Mesmo quando não pensava nele conscientemente, sentia-o sempre algures, ele estava sempre presente.
Mas isso nunca tirou nada ao que sentia por vocês os dois ou pelo vosso pai. Pensando apenas em mim própria por um momento, não tenho a certeza de ter tomado a decisão certa. Mas tendo em conta a família, tenho a certeza de que o fiz.
Às vezes é preciso aprender a perder, a ouvir e não responder, a falar sem nada dizer, a esconder o que mais queremos mostrar, dar sem receber, sem cobrar, sem reclamar. Às vezes, é preciso partir antes do tempo, dizer aquilo que mais se teme dizer, arrumar a casa e a cabeça, limpar a alma. Às vezes, mais vale desistir do que insistir, esquecer do que querer. No ar ficará para sempre a dúvida se fizemos bem, mas pelo menos temos a paz de ter feito aquilo que devia ser feito, somos outra vez donos da nossa vida. Às vezes, é preciso abrir a janela e jogar tudo borda fora, queimar cartas e fotografias, esquecer a voz e o cheiro, as mãos e a cor da pele, apagar a memória sem medo de a perder para sempre, esquecer tudo, cada momento, cada minuto, cada passo e cada palavra, cada promessa e cada desilusão, atirar com tudo para dentro de uma gaveta e deitar fora a chave. Porque quem parte é quem sabe para onde vai, quem escolhe o seu caminho, mesmo que não haja caminho, porque o caminho se faz a andar. O sol, o vento o céu e o cheiro do mar são os nossos guias, a única companhia, a certeza que fizemos bem e que não podia ser de outra maneira. Quem fica, fica a ver, a pensar, a meditar, a lembrar. Até se conformar e um dia então, esquecer.
Não posso negar o que vi, o que cheirei, o que senti, o que amei. Não posso negar que fui feliz, se fecho os olhos e sinto ainda todos os instantes felizes. Não, não posso negar que atravessei rios contigo, que te ensinei o nome das estrelas, que ouvimos juntos os pássaros e o vento nas árvores, que caminhei pelas ruas de mãos dadas contigo e que houve outros momentos que não foram tão felizes (…) mas havia uma luz ao fundo e essa luz indicava o caminho. Enquanto me lembrar estarei vivo e, vivendo, não deixarei morrer quem caminhou comigo, ao longo do caminho.
Não Te Deixarei Morrer, David Crockett, Miguel Sousa Tavares
Sempre te amei sem saber porquê. Não preciso de porquês, é mesmo assim. Mas, mais do que porquês ou razões, adoro olhar para ti e perceber o quanto gostas de mim. Não preciso que mo digas para o saber, e não há segurança maior do que a certeza das coisas que são ditas sem palavras.
Espero Por Ti Em Paris, Diana Mendonça & David Marle
Tu odiar-me-ás e eu nada poderei fazer, senão sofrer o teu ódio em silêncio, sofrê-lo na carne, como açoites, dilacerando o meu corpo que foi teu tantas vezes, como nunca foi de mais ninguém. Assim vou vivendo sem ti e sem procurar saber de ti. Mas sei de mim, sei do imenso vazio da tua falta, que nada preenche nem faz esquecer. Sei das horas que continuo a atrasar-me no hospital para não chegar cedo a casa. Sei dos desvios que faço para não te encontrar e não deixar que destruas um pouco mais do que se escaqueirou. Sei do jogo cruel dos casamentos, dos baptizados e do Natal em família, isso a que tu chamas “a via sacra da hipocrisia”, sei das horas sem sentido que deixamos para trás. E que interessa, afinal, saber se sou feliz, assim? Por que perguntas sempre isso, quando me encontras? Por que te satisfaz tão fraca desforra, como se a tua sobrevivência já só se pudesse alimentar da minha impossibilidade de ser feliz. E porque não és tu feliz, então? Tu que tens tudo para isso e que és livre, nada te prende e nada deves a ninguém senão a ti próprio? Por que permaneces amarrado a mim como o último marinheiro de um navio velho que nunca mais navegará e que, em lugar de embarcar noutro barco, noutro destino, permanece grudado na ponte de comando inútil, envelhecido com o seu barco, ressequido e amargo? Vive tu. Vive por nós. Não deixes que eu te destrua. Não me deixes mais esse peso. Naveguei até ao cais onde tenciono ficar e morrer, mas evitei o naufrágio em mar alto e não me deixarei afundar aqui, encostada à terra firme.
Não Te Deixarei Morrer, David Crockett, Miguel Sousa Tavares
Não dormes comigo à noite quando eu me volto e torno a voltar na cama, buscando um sono que te apague de mim, que afaste as perguntas que então me devoram «Onde estará ele agora? Estará sozinho em casa, sofrendo por minha causa? Estará acompanhado, dando a outra mulher o que eu já não tenho dele? Como fará ele amor com outra mulher? Como o pode?» Como farás amor, meu amor? Farás como eu faço de olhos fechados, de boca fechada, breve e silenciosamente, como se roubasse uma casa na escuridão da noite? Tentarás como eu substituir a paixão e o excesso pela ternura e pelo consentimento? Com essas a quem chamas amigas, farás amor como um amigo? E, por vezes, farás amor sozinho, como eu faço pensando em ti, descendo a mão devagar, devagar, devagar, com todo o resto da vida à minha frente? E quem dormirá ao teu lado de noite? (…) E que sabes tu do meu sono? Que imaginas tu das minhas noites? Saberás tu que as mais felizes são aquelas em que chego à cama e adormeço, sem sequer me lembrar de ti, nem querer, como na música de Simone “eu não me lembro, nem esqueço – adormeço”.
Não Te Deixarei Morrer, David Crockett, Miguel Sousa Tavares
E lembrei-me de ti, com ternura (ou seria paixão?). A palma das tuas mãos, a pele dos teus pulsos, os dedos esguios e longos, os dentes brancos num sorriso meio tímido, meio atrevido, o teu riso, o teu humor, a tua inteligência cristalina. Pensei telefonar-te, mas estas coisas não se dizem por telefone. Guardei-te para mais tarde, e para quando os teus olhos pousassem sobre mim, para quando a tua mão me limpasse o suor das testa, a tua boca limpasse os vestígios de sal da minha pele. Em vão, como vês, me esforcei por não me distrair. Para passar por ti como se passa por um episódio, por um acidente à beira da estrada, por uma ilusão de água num mar sem fim de areia. Eu queria só a solidão da solidão, o silêncio submerso dos dias vazios e sem destino, a consistência da água e a evidência das pedras. Eu queria um mundo sem ti nem ninguém mais, uma vida - tão merecida - feita de egoísmo e de instantes impartilháveis. Mas tu és como a anémona que segue a corrente que passa, és a lapa presa à rocha, o sulco na areia durante a maré vazia que indica o caminho de regresso ao mar, tu és a densidade da água dentro da qual eu me reencontro e me reconstruo.
Não Te Deixarei Morrer, David Crockett, Miguel Sousa Tavares
“Deve ser horrível ser-se deixada por ti!” Albert nunca mais esqueceu quando é que Marta tinha dito essa frase. Estavam deitados na cama nus, era fim de tarde e tinham acabado de fazer amor. Um silêncio instalara-se entre eles e velava sobre os seus corpos transpirados, mas era tudo menos um silêncio de estranhos. Pelo contrário: era tão familiar, tão íntimo, tão intenso, que chegava a doer de puro prazer. Era mais íntimo do que a própria nudez, mais devassante do que tudo o resto que faziam na cama. E, então, Marta dissera aquela frase, sem mais nem menos, assim de repente. Ele ficou calado, ela voltou a calar-se, nada mais disse e ficou outra vez em silêncio. Ele lembrava-se de ter chegado a pensar “Posso dizer o mesmo”, mas nada disse. Para quê? Sabia que Marta tinha razão, sabia que era por causa do que aquela frase encerrava que um dia Marta o deixaria – ela, antes dele. Essa frase, essa terrível defesa, ele passeara-a depois, ao longo dos anos, ao longo das dezenas de outros corpos, de sentimentos que afinal não passam de sensações e onde tudo é desesperadamente contraditório: porque não te amo, tenho este corpo para te oferecer, porque te amo, fujo e desapareço. E, porque desapareço, não te esqueço, porque essa é a minha forma de te amar – tudo o resto é ainda mais e mais sofrimento.
Não Te Deixarei Morrer, David Crockett, Miguel Sousa Tavares
Remorsos, sim, é verdade, às vezes tenho remorsos. Vejo-me em sonhos como um pássaro negro crepuscular, alimentando-se nas sombras, nos desperdícios, nos destroços, das vidas alheias. Mas afinal, o que se leva da vida, senão os remorsos? Remorsos do que poderia ter sido e não foi, e do que se perdeu depois de ter sido. Remorsos do que devia ter sido dito e feito, e não o foi a tempo, ou do que foi demasiadamente dito e feito. Remorsos destes eternos desencontros, desta sensação de que nada existe no seu tempo certo, de chegar sempre tarde ou partir cedo demais. Porque será que a seguir à noite vem sempre a manhã e de manhã pesa sempre nos olhos e na alma o que se fez e desfez de noite – um corpo húmido deixado num lençol de seda e o ladrão furtivo desse corpo abandonando o quarto que não é seu, em direcção ao vazio de tudo o que lhe pertence inutilmente.
Não Te Deixarei Morrer, David Crockett, Miguel Sousa Tavares
Albert nunca recuperou a ausência física de Marta. Mas guardou os silêncios e reconstruiu-os. Em cada silêncio da sua vida, falava com ela – como fazia dantes, deitado ao seu lado, falando em silêncio, numa nudez absoluta, sem segredos nem medos. Porque nada é mais íntimo e mais indestrutível do que o silêncio partilhado. O silêncio fica porque nunca mente, porque é tão íntimo que não pode ser representado, é tão envolvente que não pode ser rasgado.
Conheço bem Albert e Marta sei o quanto se amam em silêncio e à distância e não sei dizer como acabará a sua história. Ele destrói-se, ela defende-se. Cada um deles faz por desejar ou fingir desejar a salvação própria, mas, acima de tudo, teme a salvação do outro. O silêncio é o que lhes resta, o que os une, uma finíssima película de tempo suspenso, para além da qual não há nada mais do que a escuridão dos abismos. E, por isso, nenhum deles ousa qualquer palavra, qualquer gesto, qualquer coisa que possa romper esse ténue fio que os prende à eternidade.
É uma história triste e sem fim feliz à vista. Conto-a, porque me parece que ela encerra uma lição útil: nunca devemos amar em silêncio, nada é mais perigoso do que dividir com outrem os pensamentos vividos em silêncio.
Não Te Deixarei Morrer, David Crockett, Miguel Sousa Tavares