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aspalavrasnuncatedirei

Há palavras que nunca chegam ao destino...fazem uma longa e amarga travessia pela solidão dos sentidos e morrem na escrita destas crónicas.

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Há palavras que nunca chegam ao destino...fazem uma longa e amarga travessia pela solidão dos sentidos e morrem na escrita destas crónicas.

Fábula do Leão e do Cisne

por aspalavrasnuncatedirei, em 29.01.07

 

 

Imagem Retirada da Internet

 

 .

                                                    

Era um vez um Cisne, de plumagem branca, pescoço esguio e elegante, cabeça altiva e segura.

Vivia num Lago Encantado onde tudo era perfeito: água cristalina, margens de folhagem verde e frondosa, peixes amigos, coloridos e o bicho Homem longe do seu horizonte. 

O Cisne era feliz, ou pelo menos pensava que sim, porque todos os dias eram tranquilos e seguros, ele sabia sempre por onde nadar, conhecia bem a temperatura das águas, a sua humidade, as sensações que lhe provocavam o caminho.

            Era admirado por todos os habitantes daquele espaço, a todos tocava com a sua pureza singular, a sua harmonia, a sua singeleza.

            Um dia, chegou ao Lago um Leão, imponente e altivo, sequioso de matar a sua sede. Bebe, bebeu, e sentiu-se observado.

            - Quem és tu, tão puro e doce, branco e sereno? - Indagou o Leão curioso, afinal, era o Rei da Selva e não se apercebera da beleza daquele ser que vivia ali tão perto.

            - Sou o Cisne! E tu quem és? – Perguntou candidamente.

            - Como quem sou eu ?!?! – Rugiu o Leão indignado – Sou o Rei dos animais, a figura mais importante do reino, e tu…és meu vassalo.

            O Cisne ficou deslumbrado com a altivez do Leão, nunca outro animal do Lago lhe tinha falado assim, nunca vira outros animais que não fossem os daquelas águas cálidas e não imaginava que existisse vida para além do seu horizonte. 

O Leão foi-se embora incomodado, zangado por não ter sido reconhecido pelo seu súbdito, mas algo naquele Cisne o cativou.

            Ele era puro e branco, sereno e macio, perfumado e elegante no deslizar dos seus movimentos.

            O Leão só estava habituado a conviver com os seus semelhantes, leões, como ele, de jubas poderosas; de garras afiadas, sempre à espera de atacar as presas; de dentes afiados e acutilantes, prontinhos para devorar os incautos que se atravessavam nos seus caminhos, de pêlo sujo pelo desgaste da vida e marcado pelo sangue da morte.

            Raramente se misturava com outras raças, que considerava inferiores, mas aquele Cisne tinha algo de belo. 

No dia seguinte, voltou ao Lago dos Encantos sob o pretexto de saciar novamente a sua sede, mas esta não era de água, era de descobrir o mistério de tamanha luminosidade.

- Fala-me de ti – ordenou altivo.

            -Já te disse, sou um Cisne. Faço parte de um conjunto de aves palmípedes. Tenho uma vida preciosíssima: todos os dias de manhã, providencio o alimento para os meus irmãos mais pequenos, preparo tudo à minha volta para que se mantenha este um lugar idílico para aqueles que aqui habitam, purifico-me a cada momento na magia das águas e sou quase feliz.

            - «Quase feliz»?! O que te falta meu amigo? – indagou curioso o Leão.

- Não sei, mas às vezes oiço uma voz que me diz que há mais vida para além daquela que conheço no Lago; que há outros animais por conhecer; que há uma Terra inteira por explorar. Como é a tua terra Leão?

- É um lugar fantástico! - assegurou ele tentando impressionar o Cisne – é poderosa, tem milhares de outros animais (nenhum tão importante como eu), sim porque eu sou o Rei. Tem também espécies vegetais, tem homens e crianças, tem presas e predadores, mas ninguém na Terra é tão importante como eu, porque sou o Rei dos animais, já te tinha dito?

            - Sim – sorriu o Cisne com toda aquela reiteração – já me tinhas dito.

            Quanto mais o Leão falava, mais o Cisne se encantava com aquele ser tão poderoso, ele, que era uma ave tão simples, que nunca tinha saído do Lago, tinha um novo amigo, e não era um animal qualquer era um amigo régio.

            Por sua vez, o Leão estava consciente do impacto que estava a causar naquele amigo branco, e o seu ego estava cada vez mais insuflado

            Curiosamente uma tristeza apoderou-se dele. Realmente era um animal especial mas por alguma razão também não era feliz. Caçava, caçava, caçava, provia o sustento daqueles que dependiam dele; lutava para manter a sua imagem e poder, (sim porque, senão se acautelasse,  qualquer outro Leão, de menor juba, usurparia o seu trono).

            Lembrou-se de outros tempos,  de quando era apenas um leãozito e tinha uma juba que não lhe dava motivos para se orgulhar. Nessa altura passava horas a admirar as estrelas, a lua, e não compreendia por que razão não as podia alcanças. Decidiu então, com a determinação que lhe era característica, que no dia em que fosse rei iria também mandar no céu e desvendaria todos os seus mistérios.

            Mas o reinado já ia longo, e nunca tinha conseguido lá chegar. Tocado pela leveza do Cisne, confiou-lhe esta sua amargura, e desabafou com ele esta sua tristeza.

            - Há estrelas e lua no céu??? –  questionou incrédulo o Cisne.

            - Claro! Mas tu não olhas para cima?

            - Não – respondeu calmamente – a minha vida é a do Lago, só olho para aquilo que me envolve, não posso desejar os elementos que não posso ter.

            - Mas é claro que podes! – assegurou – Deves ser ambicioso. Julgas que eu seria o que sou senão fosse muito exigente e não lutasse por tudo aquilo que os meus olhos vêem?

            Subitamente, tocado pela empolgação do momento, o Leão teve uma ideia luminosa, que iria mudar para sempre a vida destes dois seres.

            - Vem comigo conhecer o Céu e a Terra!

- Não posso… tenho medo. O Lago é mais seguro, é a única realidade que conheço, não posso sair daqui. Fica tu comigo. Podes matar a tua sede, sempre que quiseres, podes desbravar estas margens e podes conversar sempre comigo.

            - Eu no Lago? – Ironizou com desdém - Já imaginaste como ficaria a minha juba? Perderia toda a imponência, o meu aspecto deve ser sempre superior, soberbo, senão perco o respeito dos meus súbditos. Vem tu comigo, vá lá, vá lá, não tenhas medo… eu sou o Rei, lembras-te? Comigo estás protegido, em segurança, não deixarei que nenhum outro animal se aproxime para te fazer mal.

            O coração do Cisne bateu com mais força, só o tinha sentido bater assim, quando um caçador se aproximou do Lago para caçar os seus irmãos, mas agora era um bater diferente, as suas penas estavam eriçadas, os seus olhos brilhavam. Decidiu então que iria abandonar o seu habitat e iria aventurar-se em terras de sua majestade. 

Foram dias sublimes, aqueles que passaram juntos, o Leão, ufano, mostrava ao Cisne todas as maravilhas de Terra, todos os animais, as rochas, as plantas e a ave deixou-se envolver naquele mundo mágico.

Mas ambos tinham um sonho comum que tardava em se concretizar, faltava-lhes conhecer o céu e as estrelas.

            O Cisne pensava sempre que o Leão estava a adoptar a estratégia do Save the Best for Last, e que antes de regressar ao Lago mostrar-lhe-ía o que lhe prometeu E o outro não queria desiludi-lo pois não sabia como lhe dizer que não conhecia o caminho que os faria alcançar o Céu.

            Um dia o Leão foi iluminado. Lembrou-se que poderia levar o seu amigo até ao cimo de uma montanha e desta forma estaria mais perto do Céu. Lembrou-se ainda que os Cisnes podem voar e talvez ele conseguisse soltar-se naquela plenitude. Se assim o pensou, melhor o executou e partiram os dois à descoberta. 

Quando chegaram ao cimo da montanha, o Leão ficou ainda mais orgulhoso do seu desempenho, afinal, só ele conseguira a Odisseia de retirar o Cisne ao Lago e aproximá-lo tão perto do céu.

            Por sua vez, o Cisne estava extasiado com a beleza celeste, com as estrelas cintilantes, com o brilho e luminosidade da Lua. Tudo ali lhe parecia mais puro, mais belo, mais verdadeiro. Era ali que Deus, O todo Poderoso, O que criou tudo e todos, O que brincava com eles às escondidas e se escondia numa nuvem mágica, e era ali que estava ele também, um ser tão frágil e indefeso.

            Conhecedor dos pensamentos do Cisne, disse-lhe o Leão:

 - Tu és maior do que julgas ser. Eu sou conhecedor do meu reino e conheço todas as características dos animais, sabias que os Cisnes podem voar?

            A avezinha nem queria acreditar no que ouvia. Ela que outrora nadava no seu Lago, e não conhecia outra forma de se movimentar, num curto espaço de tempo, já tinha aprendido, com o Leão, a andar pela Terra e agora ele afiançava-lhe que ainda podia voar??? Inacreditável!!!

 

- Não tenhas medo, abre as tuas asas, deixa que a mão do vento te proteja e descobre tudo o que o Universo tem reservado para ti.

            Timidamente o Cisne, abriu as suas esplêndidas asas imaculadas e mergulhou no azul índigo do céu, fazendo assim a viagem mais extraordinária da sua vida, sentindo-se tocado pela energia cósmica do Universo.

            Quando regressou, pleno de vida e de amor, agradeceu humildemente ao Leão dizendo-lhe:

            - Primeiro mostraste-me a Terra, depois mostraste-me a Lua e agora fizeste-me chegar às estrelas. E uma lágrima feliz deslizou no seu rosto.

            Enquanto se olhavam em silêncio e contemplavam as maravilhas do Universo, não perceberam que se aproximava, já há algum tempo, uma Serpente malévola que assim que cravara os olhos no Cisne, desejou espetar-lhe todo o seu veneno, afinal não era todos os dias que andava por ali um animal como aquele. 

O Cisne incauto, não percebeu o olhar lascivo da Serpente que se acercava e só quando a sua língua mortífera lhe tocou percebeu que um líquido gelado percorria todo o seu corpo e soltou um grasno de dor. 

Incrédulo, o Leão viu a vida do protegido fugir-lhe por entre as patas e gritou com desespero:

- Não morras! Não vás! Não desistas da vida, ainda podes recuperar.

      O Cisne, esvaindo-se no seu doce sangue, viu a candura da sua plumagem branca manchada pelo vermelho da morte, e disse:

            - Um dia também tu perderás a coroa e o ceptro e no brilho das águas cristalinas, ou no calor da planície, ou ainda no brilho cintilante da Lua, sei que nos iremos encontrar.

Tristemente, o Leão colocou o Cisne moribundo no seu dorso e resolveu levá-lo até ao Lago          

              Encantado para que pudesse descansar em paz. Ao entregá-lo ao azul das águas, outros Cisnes acercaram-se, desdenhando e desprezando aquele que agora regressava. Afinal, o Cisne ousara voar mais alto, sair daquele porto seguro para explorar o desconhecido, abandonar todos aqueles que sempre ali estiveram, tudo isto para fazer parte dos serões da corte real. Não lhe perdoariam.

              O Cisne sentiu todo este desdém, mas também sentiu a dor e o amor espelhados no rosto do Leão.

              E a morte veio Libertadora.


                                                                             

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