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aspalavrasnuncatedirei

Há palavras que nunca chegam ao destino...fazem uma longa e amarga travessia pela solidão dos sentidos e morrem na escrita destas crónicas.

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Há palavras que nunca chegam ao destino...fazem uma longa e amarga travessia pela solidão dos sentidos e morrem na escrita destas crónicas.

Na cauda do teu piano

por aspalavrasnuncatedirei, em 15.04.16

Piano.jpg

 

Aproximei-me lentamente para que não sentisses a minha presença. Mesmo antes de ver a expressão do teu rosto, percebi que não estavas bem. Só te entregas ao piano quando os teus dias são sombrios, quando a pressão no peito é tão forte porque lá dentro o coração ameaça explodir, é que purificas a alma na Moonlight Sonata de Beethoven. Naquele instante, os teus dedos, como varinhas mágicas, transferem para o teclado, todas as emoções que te habitam. Invejo-o, porque lhe tocas, são aquelas teclas pretas e brancas, maravilhosamente melodiosas, desumanamente frias, que recebem o calor da ponta dos teus dedos. São elas que acariciadas, gemem por ti.

Queria que me entregasses o teu medo, que depositasses em mim a tua raiva, a tua frustração, que encontrasses em mim o teu porto de abrigo, a tua alma conselheira. Mas não consegues, a tua alma é feita de pautas, de acordes, não de palavras e por isso, é sempre o piano que te recebe. Hoje decidi ganhar esta guerra fria e vou entrar na partitura que construíste à tua volta para te proteger. Vou entrar no teu mundo opaco e roubar ao piano o carinho que é meu.

Encosto o meu corpo ao teu em silêncio, fico imóvel… deixo que o calor do meu ventre te aqueça as costas. Inicialmente ignoras-me, estás demasiado cristalizado nos teus medos para te permitires sentir alguma sensação de conforto, mas eu não desisto e suavemente coloco as mãos sobre ti. Acaricio-te os ombros, tão tensos de vida, deixo que um fio imaginário se desprenda das minhas mãos e te faça uma transfusão de todo o meu amor. Começas a vacilar… aqui e ali uma nota ecoa fora do sítio… desço timidamente a minha boca ao teu pescoço para te arrepiar, provocando na música um som cada vez mais perturbado.

Subo com delicadeza para a cauda do piano, a camisa de noite sobe ligeiramente insinuando-te debaixo dela  o meu corpo que adivinhas nu. Lentamente… deito-me de barriga para cima lançando em súplica o meu amor ao céu, deixo-me cair para trás, entregando o meu corpo quente ao arrepio frio da madeira. O meu cabelo espalha-se docemente pelas teclas… a música para... os teus dedos repousam assustados e cansados em mim, agora a minha pele, que também conheces de cor, é o teu piano e o meu corpo é a partitura que desejas ler.

Compenetradamente, libertas-me do pedaço de cetim que trago vestido e que atiras para o lado, descobres a minha pele branca que contrasta com o negro do Steinway e admiras com um olhar penetrante cada pedaço de mim. A tua boca procura na minha o sopro de vida que lhe tem faltado para respirar, abraças-me em desespero e repousas a face no meu peito que reconheces como o templo que te pacifica. E é no momento em que te seguro no rosto para te fazer aportar nos meus olhos, que te esqueces da sombra dos dias e descobres o brilho faroleiro que te guia ao encontro do amor.

 

Texto: Sandra Barbosa

(Todos os direitos de autor reservados)

Imagem: Retirada da Internet

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