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aspalavrasnuncatedirei

Há palavras que nunca chegam ao destino...fazem uma longa e amarga travessia pela solidão dos sentidos e morrem na escrita destas crónicas.

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Há palavras que nunca chegam ao destino...fazem uma longa e amarga travessia pela solidão dos sentidos e morrem na escrita destas crónicas.

Somos sempre menos na vida dos outros do que aquilo que imaginamos...

por aspalavrasnuncatedirei, em 10.04.16

 

sozinha 3.jpg

 

Hoje sonhei que tinha morrido num estúpido acidente de carro, estava a enviar uma mensagem ao meu marido "- Tira o frango do congelador" quando me despistei ribanceira abaixo.

 

O meu espírito, do lado de fora, assistia ao pânico das pessoas que se aglomeravam e ao aparato que se gerou à volta. Via o meu corpo ensanguentado dentro do carro e o sopro de vida a esvair-se de mim. A primeira coisa que me ocorreu foi "- Como é que eles vão viver sem mim?" e a minha alma desmaiou de aflição naquele instante.

 

Acordei 4 meses depois numa nuvem alcatifada, apressei-me a pedir autorização às hierarquias universais para vir cá abaixo (felizmente que no plano celeste existe menos burocracia) e vim à terra para visitar o sofrimento daqueles que me  amavam, mas... ninguém me tinha preparado para o que ia acontecer a seguir...

 

Trespassei as paredes da casa - já tinha visto isto num filme, e sempre tive vontade de o fazer - e vi o meu marido deitado no sofá a olhar para o telemóvel (desde quando é que tens um iphone 6?). Aproximei-me, já a padecer-me com a sua dor e vi-o… com uma camisa azul nova, barbeado, perfumado a cheirar a fresco, cabelo um pouco mais comprido, acho que tinha até um penteado novo. Lindo de morrer, como no dia em que o conheci. ESPEREM LÁ!!!!!! O QUE É QUE SE PASSA AQUI???? Este tipo está viúvo há 4 meses, não está vestido de luto, não tem um ar infeliz e está todo sorridente a enviar mensagens??? Como é que é possível? Estranho...

 

Aproximei-me para ler o que escrevia, possivelmente estaria a tratar dos negócios da quinta ou a conversar com as nossas filhas. Debrucei-me sobre ele e li...  O destinatário chamava-se "Chuchu"... CHUCHU"?!?!?!? Mas o que é isto?!?!?! O meu corpo ainda não arrefeceu e ele em vez de pensar que a vida não faz sentido sem mim, já está a convidar uma hortaliça para jantar????? 

 

Não quis acreditar no que via, já não tinha corpo para me doer, mas percebi, agora mais do que nunca, que as dores sempre foram de alma, levitei até ao primeiro andar para me pacificar com as minhas filhas que estariam certamente arrasadas com o meu desaparecimento tão prematuro.

 

Entrei pela porta do quarto, lá dentro ecoavam as gargalhadas das minhas meninas que frenéticas trocavam de roupa deixando tudo caótico à sua volta... - Meu Deus, como é que elas cresceram tanto em tão pouco tempo? A Sissi estava tão elegante naquele vestido preto e a Nucha ficava linda maquilhada. Oh não... outra vez não... mas o que é que aconteceu às minhas princesas?!?! Elas não sentem a minha falta??? Vão sair à noite?!?! Para onde? Com quem? O pai autorizou?

 

-  Sissi, despe imediatamente esse vestido porque ele é meu e custou-me uma fortuna!

 

- Nucha, vai lavar a cara e tira os saltos altos que não tens idade para isso!

 

A minha alma exausta... deambulou pela casa tentando encontrar resquícios meus por ali. Já não era o meu lar, era uma habitação onde a minha família morava...

 

Decidi visitar o escritório para confirmar se o caos se tinha instalado por lá também. Certamente que os meus colegas sentiam a minha falta. Pois é... agora não tinham quem resolvesse as asneiras que eles faziam. Quem trabalhava atualmente horas a mais no fim do dia? E aos fins de semana? E agora, quem respondia aos emails? Quem aturava os clientes chatos? Não me admirava nada que com o meu desaparecimento estivessem à beira da rotura. 

 

Ao chegar, reparei que se encontrava tudo como antes, tudinho! Estranhamente senti algum conforto, uma vez que ainda estava em estado de choque com o que vira em casa, mas ali, no local onde dei o meu sangue, suor e lágrimas durante 20 anos, estava tudo igual.

 

O diretor comercial continuava enrolado com a rececionista de decotes proeminentes, que por sua vez, permanecia proeminentemente decotada. O meu colega Américo lá estava afincadamente em frente ao computador... mas a ocupar o tempo no Facebook, a suspirar pelas vidas de mentira que via em cada perfil, para esquecer a ausência de alegria que subsistia na sua patética existência. A Isabel mantinha-se um polvo traiçoeiro, cujos tentáculos destilavam veneno, minando tudo e todos à sua volta. Portadora de uma língua viperina, com pernas de gazela numa minissaia ordinária, uma verdadeira cabra para as colegas, uma gata com cio atrás do tipo musculado dos recursos humanos, fazendo-se passar uma cadela fiel ao gestor financeiro, quando na verdade, anda armada em papagaio a vender informações sobre a nossa carteira de clientes. Irra!!!!! É muito bicho numa mulher só.

 

Olhei para o meu gabinete, aproximei-me lentamente... e vi que na minha secretária já não repousa a minha fotografia com a família nos Alpes, nem a foto do último jantar de Natal da empresa onde eu estava sorridente e feliz, na parede já não mora o meu diploma e na janela já secou, por falta de cuidado, a minha orquídea. Depositei a minha alma na cadeira, e morri novamente num despiste causado pelo abandono e desilusão e chorei, chorei, chorei como só uma alma em sofrimento sabe fazer.

 

E foi assim que acordei na minha cama... Lavada em lágrimas devido a um sonho sufocantemente real. Olhei para o lado, o Miguel dormia ainda com um leve sorriso (será que já anda  dar umas dentadas na Chuchu?)... fui ao quarto das miúdas e mantinham os rostos angelicais aos meus olhos de mãe. Fui tomar um duche e preparei-me para ir trabalhar.

 

Que sonho estranho... é esquisito descobrir que quando morres o mundo continua a girar sem a tua presença, que as pessoas que amas voltam a amar e que tu és apenas uma centelha divina que nasce, vive e morre. Não vale a pena sacrificares-te pelos outros, trabalhar até à exaustão, anulares os teus sonhos em nome da felicidade daqueles que achas que tens obrigação de proteger porque… somos sempre menos na vida dos outros do que aquilo que imaginamos...

 

 

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Texto: Sandra Barbosa

(Todos os direitos de autor reservados)

Imagem: Retirada da Internet

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