Tão estranhos que nós somos
Saímos de casa com uma pontualidade britânica às 10:30 como sempre fazemos a cada manhã de domingo. Com movimentos mecânicos entramos no carro, sentas-te numa atitude machista ao volante, conduzes sempre que estamos os dois, mesmo que a viagem se faça no meu carro, eu já nem ligo, distraio-me com a companhia do rádio, mudando de estação emissora sempre que a melodia não me agrada.
Paras na pastelaria de sempre sem me perguntar se gostaria de me aventurar noutro espaço qualquer, sento-me na mesa do costume, virada para a rua habitual, só para me poder deixar aquecer pelo sol. De olhos vidrados vejo numa tela gasta de cinema a vida a passar diante dos meus olhos… conheço de cor todos os nossos rituais, sei com uma certeza dolorosamente absurda todos os movimentos que vamos fazer, todas as palavras que vamos dizer.
Vais pedir um café curto, em chávena fria, e um pastel de nata queimado, borrifado com canela. Pedes, como se eu não tivesse voz ou vontade própria, um chá de camomila para mim, desconhecendo que hoje em dia prefiro cidreira. Enquanto esperas, irás ler o jornal que saqueaste à mesa do lado. Começas a leitura pela página do desporto, saltitas pelos títulos da economia e vais ser interrompido pela vizinha do 5ºC que virá comprar pão, acompanhada pelo cão e tu vais aproveitar para brincar com ele. Enquanto as tuas mãos afagam o pelo do pastor alemão, recordo-me do tempo em que as tuas mãos tinham o poder de arrepiar a minha pele quando as sentia… Hoje, olho-as enrugadas, frias, distantes, incapazes de me provocar qualquer sensação. Subo o meu olhar das mãos aos olhos e não te reconheço… ou melhor, tens pouco do homem por quem um dia me apaixonei. Já não me fazes rir, talvez porque conheço as tuas piadas de cor e tu perdeste a capacidade de me surpreender com frases novas.
E quando os teus olhos regressam ao jornal, fito-te com um olhar longínquo e deixo-me vaguear tristemente. Tornámo-nos dois estranhos que coabitam no mesmo casulo. Tu sais de manhã para o consultório e vives uma felicidade novelesca com a tua secretária. Pensavas que eu não sabia? Sei, há muito que sei. Não consigo precisar quando o percebi, mas quando dei por isso há muito tempo que os teus beijos eram castos, os teus abraços eram fraternais e o meu corpo era invisível ao teu. Depois, foi só ver a forma como passaste a vestir roupas que são para homens com metade da tua idade, observar que gastas uma pequena fortuna em cremes antirrugas, que tudo à tua volta é anti age e que as horas extraordinárias que fazes a cada serão, se fazem acompanhar com o empenho da tua secretária.
Sabes o que é mais triste do que a traição? É a tua capacidade em me seres tão indiferente, é a minha frieza para não te sentir em mim, é o facto de seres uma vela apagada que há muito não ilumina a minha vida. Não me dói no corpo, nem na alma, muito menos na autoestima. O homem por quem me apaixonei aos 16 anos, que me fez mulher aos 18, com que me casei aos 21, o que me fez mãe aos 23 simplesmente já não existe, perdeu-se nesses caminhos empoeirados, tornou-se um adereço como qualquer outro lá de casa, e, fatalmente tornou-se cego à pessoa em que me transformei também.
Bebo um gole de chá que arrefeceu de desapontamento na chávena só para me ajudar a esquecer esta solidão a dois, para engolir esta insatisfação de ainda partilhar contigo os rituais de domingo.
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Texto: Sandra Barbosa
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Imagem: Retirada da Internet