Ícaro (ou a metáfora da ambição humana)
Ao revisitar lendas e mitos, encontramos estórias na História da Humanidade, que servem de espelho aos caminhos que traçamos para a nossa vida. São enredos que se definem por graças e desgraças, medos e conquistas, vitórias e derrotas e que nós descobrimos com maravilhamento. Ao ler as aventuras desses seres mitológicos percebemos aquilo que nos define como seres divinos, que também somos e, ao mesmo tempo, aceitamos neles a sua fragilidade dentro da imortalidade…
Os últimos anos da minha vida fizeram-me tropeçar no mito de Ícaro. Aquele que teve tudo para ser feliz (o pai, Dédalo, contruiu umas asas que lhe permitiu concretizar o sonho do Homem – voar) mas nele a ambição falou mais alto, e aproximou-se demasiado do sol, derretendo assim as asas coladas com cera de abelha, acabando o jovem morto, no leito de um grande rio.
Todos nós queremos voar, se possivel a quatro asas, ter alguém por perto que nos incentive ao voo quando estamos cansados, que nos dê alento quando desejamos parar, que nos devolva um olhar feliz só porque partilhamos aquela viagem.
Mas voar pode ser para o homem um sonho perigoso: começamos por timidamente levantar os pés do chão, ensaiamos pequenos momentos de levitação, mais tarde ganhamos coragem e ensaiamos percursos mais longos, até que confiantes nos lançamos a novos destinos. Até aqui tudo bem, nada há de errado. O problema instala-se quando o desejo e o prazer de voar, se transformam em obessessão. É típico do Homem ter pés e desejar asas, ter a Terra e querer atravessar o Mar, conquistar Oceanos e depois confrontar-se com a vontade de possuir a Lua. Passo a passo, desejamos sempre o que não temos e vamos experimentando a vida para ver até onde ela nos leva.
Construímos canoas, fortes embarcações, aviões, foguetões… mas queremos sempre mais…queremos voar a céu aberto…queremos chegar ao sol… E depois de todos os sucessos alcançados e mediante a felicidade que nos envolve, aventuramo-nos desafiadoramente como o Ícaro. Sabemos de cor os perigos em que incorremos, conhecemos os riscos de tal voo, mas o bichinho da insatisfação corrói-nos e nada nos consegue deter.
Um dia voamos em direção ao astro rei, nada nos pode deter, surdos aos avisos de quem sabe mais do que nós, cegos perante a felicidade que já temos mas que não queremos valorizar. Voamos, voamos, asas desbragadas e lentamente o calor envolve-nos o corpo. Quando nos apercebemos, já é demasiado tarde, a cera derrete pingo a pingo, gota a gota, e nada poderá deter a nossa (auto)destruição.
Há quem morra logo ali, escaldado de forma imperiosa, há quem se escalde e inicie um lento processo de corrosão…as pontas das asas estão queimadas sem salvação possível, descemos devagarinho desde o céu até ao fosso. Nesta morte lenta somos torturados pelo arrependimento, só então passa diante os nossos olhos tudo aquilo que tínhamos e que está irremediavelmente perdido. Só neste doloroso trajeto compreendemos que já tínhamos o Sol na nossa vida, já eramos senhores de um amor que nos dava asas e, acima de tudo, já eramos completos e felizes.
Quando o nosso corpo se estilhaça no chão, nada sentimos. Já não estamos vivos, a morte da alma que foi acontecendo na descida foi de tal forma dolorosa, que já não deixa espaço para doer mais nada. À nossa volta ninguém entende o que fez aquele amor morrer, o que fez aquele sonho derreter, mas Ícaro sabe que foi a ambição de querer aquilo que só aos deuses maiores era permitido e não percebeu quão vulnerável era.