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aspalavrasnuncatedirei

Há palavras que nunca chegam ao destino...fazem uma longa e amarga travessia pela solidão dos sentidos e morrem na escrita destas crónicas.

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Há palavras que nunca chegam ao destino...fazem uma longa e amarga travessia pela solidão dos sentidos e morrem na escrita destas crónicas.

Querido 2010

por aspalavrasnuncatedirei, em 31.12.10

 

 

 Acordei e olhei-te nos olhos… ar cansado de quem não dormiu, de quem passou as últimas horas a empacotar toda a sua existência para não deixar marcas da sua presença ao ano vindouro. Lá estavas tu, o ano de 2010, com barbas brancas, rugas a acusar a idade e uma bengala para te ajudar a partir. À minha volta caixas e caixas de momentos que marcaram os meus últimos 365 dias. Levantei-me devagar e preparei-me para espreitar pela última vez aquelas páginas da minha história. Os meus olhos poisaram no maior caixote de todos, aquele que mais prezo, o mais bonito e especial feito de algodão doce e onde se lê a letras douradas, que um anjo desenhou com uma tinta que só existe no céu «Pantufinhas». Abri-o lentamente, como quem teme descobrir o que irá saltar lá de dentro. Num caixote como este nunca se sabe, pode ser uma bola que me acerte no olho, um skate que me atinja um dente, uma PSP que ganhe vida e me faça um galo na testa… Mas não… o que saltou foram dois magníficos sorrisos, daqueles que vêm acompanhados de beijos docinhos, de abraços cheios de mimo e de um terno «-Adoro-te mamã.» Este ano foi um marco na vida dos Pantufinhas – um entrou para o 1º ciclo, outro para o 2º, e com esta mudança subiram novos degraus na sua autonomia, fizeram novas amizades, aprenderam a aprender e conheceram um mundo novo cheio de desafios, perigos e alegrias que os vão fazer crescer. Neste caixote estão as sextas-feiras de mimo, onde enrolados numa manta vimos pela milésima vez aquele DVD sempre tão especial, comemos gelado de baunilha e deixamos que o lume da lareira também aqueça os nossos corações. Estão as noites de escapadela para a minha cama: porque é mais quente, porque cheira ao meu perfume… porque eu estou lá. Por todo o caixote ecoam as brincadeiras, as queixinhas e as diabruras. No fundo do caixote estão os ralhetes, as chamadas de atenção, os momentos em que temos de dizer «-Não»… concertei esses momentos, para que ficassem lá no fundo, escondidos, e à superfície ficassem apenas as coisas boas. Ao lado, um outro caixote, o azul, onde se lia «Ohana» (como diria o Pantufinha influenciado pelo Lilo & Stitch). É um caixote estranho, como uma forma diferente dos caixotes das outras famílias, digamos que se fosse uma tela teria sido certamente pintado por Picasso. O caixote da minha família não é tradicional, nunca foi, não tem lá dentro uma árvore genealógica onde aos avós se sucedem os pais, a estes os filhos e depois os netos. A minha árvore nunca cresceu muito em altura, nunca foi um frondoso pinheiro. É uma espécie de arbusto, cresce para o lado, está cheio de ramificações, está repleto de folhas de pessoas emprestadas que não são uma Ohana sanguínea, mas são uma Ohana de coração, e como diz a minha querida Daniela «-Os amigos são a família que nós escolhemos.» Mas está repleto de amor, não há conflitos, nem brigas, há amor, independentemente dos laços que nos unem. Em cima, numa poltrona confortável, está a minha mãe, a melhor pessoa deste mundo, a minha melhor amiga. E por falar em amigos também estava lá o caixote com esse nome. É feito de carvalho, robusto, tem meia dúzia de boas amigas lá dentro, aquelas que me dizem as duras verdades, as que me dão um lenço de papel para enxugar as lágrimas, as que têm sempre quente à minha espera um caneca enorme de chá verde, as que partilham as minhas alegrias e as que são verdadeiramente minhas cúmplices. Fui espreitar outro caixote… aquele onde se lia «Trabalho». Neste 2010 foram muitas as escolas e as instituições onde leccionei. Vejamos: Escolinha de Alvega (que alguém se encarregou de fechar), Vale da Pedra (perdido no meio de nada há uma terrinha com pessoas fantásticas); Rio Maior (onde se formaram grandes cozinheiros); Santarém (o que será feito dos meus «mecatrões», mistura de mecatrónicos com mandriões); Tomar (de onde vai sair uma fornada fantástica de Acompanhantes de Crianças); Constância (uma escola de excelência, com pessoas de excelência) e… o Estabelecimento Prisional de Torres Novas onde também tive o prazer de ensinar. Neste caixote estão tantos alunos e alunas, alguns deles deixaram umas saudades tão grandes que chegam a doer dentro do meu peito. Neste caixote estão também os colegas de trabalho, meu Deus, são tantos, há realmente professores fantásticos no nosso país e eu tive o prazer de trabalhar com eles. De repente olhei para o canto e estava lá um caixote forrado com papel colorido, feito de mar e de areia, de estrada e tráfego aéreo, nele estava escrito com letras folclóricas «Viagens». Neste 2010 tive o prazer de viajar até à Bulgária, conheci pessoas simpaticíssimas, lugares lindíssimos e provei uma gastronomia deliciosa. Conheci Roma… ninguém devia morrer sem visitar Roma, sem atirar uma moeda na Fonte de Trevi, sem se comover diante da Pietá no Vaticano e de se arrepiar no Coliseu. Viajei de norte a sul, fui para fora cá dentro e pude novamente confirmar que vivo num país magnífico. Pequenino, tímido, estava o caixote «Saúde». Abri-o a medo, as memórias são dolorosas. O coração da minha mãe voltou a ameaçar que ia deixar de bater, o cancro do meu pai continua a dar provas que é resistente e descobri que sou doente renal… duro golpe este, não no rim, mas na minha alma, aprendi com este episódio que não tenho a vida nas mãos e que a vida é uma linha muito ténue que nos liga a Deus, e só ele é que sabe quando é que está na hora de nos puxar até ele. Quase a terminar o caixote, que não é caixote, é um cofre, sempre aberto com euros a esvoaçar e que teimam em não aquecer o lugar dentro dele. É um cofre dourado, que tem sempre a quantia certa, nem a mais nem a menos e que tem a quantia exacta das minhas necessidades e das minhas futilidades. A terminar, o caixote «Amor» que neste ano cresceu, amadureceu, tornou-se mais bonito, mais puro. Querido 2010, agora que vais levar contigo todos estes meus caixotes para um sótão chamado tempo, chamado vida, quero agradecer-te tudo o que me proporcionaste, desde as lágrimas aos sorrisos, passando pelas incertezas e pelas convicções. Obrigada por teres sido tão generoso comigo.

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