Nunca tive qualquer intenção de te magoar. Nunca quis infligir-te nenhuma dor. O que realmente quis foi ver-te sorrir! Sorrir, de preferência, debaixo da Chuva Púrpura. Sabes que adoro chuva e, curiosamente nos dias importantes das nossas vidas esteve sempre a chover. Lembras-te? No nosso primeiro encontro chovia torrencialmente, apesar de estarmos tão perto do Verão. Disseste que o dia estava triste e que era um mau presságio no início da nossa história de amor. Eu sorri. Disse-te que o Céu nos estava a abençoar. Disse-te que a chuva era purificadora de todos os nossos pecados. Esta foi sempre a nossa perspectiva perante as coisas – tu, pessimista, vês a escuridão em todo o lado e eu, optimista, só consigo ver a luz… Como é que te transformaste nessa pessoa tão triste? Quem é que te ensinou a ver em tudo um fim, em vez de um recomeço? Adorava ver o teu corpo molhado, a camisa colada ao corpo marcada pela Chuva Púrpura. Nunca quis ser um amor de fim-de-semana. Quis apenas ser um amigo. O teu melhor amigo. Nunca quis roubar-te de nada, nem de ninguém. O tempo vai passando, nós vamos mudando e está na hora de conquistarmos uma vida nova. Isto é um conselho especial, significa que se queres ser líder e comandar a tua vida, tens que lhe tomar as rédeas. Mas não me parece que estejas no teu caminho, não me parece que consigas tomar decisão alguma. Por isso, aqui estou. Para te guiar. Já chega de deambular numa estrada poeirenta, com trilhos enganosos, que não é a tua, e que por isso, não te vai conduzir a lado nenhum. Deixa-me guiar-te, orientar a tua mente, o teu corpo… Tudo o que sempre quis foi ver-te feliz, a dançar de corpo molhado, debaixo da Chuva Púrpura. Tudo o que sempre quis… foste TU.
Conheço perfeitamente cada pormenor do teu rosto, guardado em mim, em cada sentido meu. Tento entender o rumo que o destino nos fez tomar, tento esquecer a mágoa... guardar de ti, de nós dois, só o que é bom de preservar. Fecha os olhos, pensa em mim, protege o que eu te dou. Eu penso em ti e dou-te o que de melhor eu sou...sem defesas que me façam falhar, desejo-te nesse lugar profundo, onde só chega quem não tem medo de naufragar. Fica dentro de mim, que hoje a vida dói... Como se te arrancassem, nesse tempo que já foi. Promete-me que vais guardar tudo o que eu te dei. Como me entreguei. Mesmo que a vida mude os nossos destinos, e esta estrada nos leve para longe de nós. Mesmo que um dia tudo se desfaça em pó... eu vou guardar cada traço teu… ancorado a cada traço meu. E hoje, apenas isso, me faz acreditar que eu vou chegar contigo onde só chega... quem não tem medo de naufragar....
Texto Inspirado no tema de Mafalda Veiga, Cada Lugar Teu
Este ano lectivo fui colocada na Escola Secundária Gago Coutinho e foram-me atribuídas, para leccionar Língua Portuguesa, duas turmas de CEF (Curso de Educação e Formação), uma, de Práticas Administrativas e outra de Electricista de Instalações. Estes cursos destinam-se a alunos em situação de abandono escolar, ou aos que já tinham abandonado a Escola. Supostamente, têm programas mais acessíveis que lhes permitirá terminar a escolaridade obrigatória com sucesso. Concordo com a primeira parte da questão, é importante trazer novamente os alunos às Escolas e formá-los, mas é preciso adaptar os programas curriculares à realidade destes miúdos e aqui é que está o busílis.
Lá diz o ditado «Só quem está no convento é que sabe o que lá vai dentro», que é como quem diz, só quem está a trabalhar com estes alunos, no terreno, dia após dia é que sente as dificuldades com que se depara diariamente, e é que conhece as deficiências deste novo sistema de ensino.
Quando iniciei o meu trabalho reparei que iria leccionar a estas turmas um módulo sobre texto dramático, do qual fazia parte O Auto da Barca doInferno, de Gil Vicente e um módulo de textos épicos, onde leccionaria Os Lusíadas. Inocentemente e cheia de estupefacção dirigi-me ao Conselho Executivo e perguntei se havia algum engano com os programas, eu não queria acreditar no que os meus olhos liam e depois não quis acreditar no que os meus ouvidos ouviram, pois o que me disseram é que não havia engano nenhum.
Na primeira aula, cheia de coragem e determinação, lá fui eu explicar aqueles meninos em que consistiria o nosso trabalho e de que forma se iriam desenvolver as nossas aulas. Elogiei ainda o facto de terem escolhido o curso de electricidade, uma vez que é um curso com grandes saídas profissionais e que poderá ser monetariamente muito compensador. Comentário de uma cabecinha pensadora «- Ganho mais no tráfico de droga». «A diferença - respondi-lhe eu -é que a traficar drogas vais preso e tens uma vida miserável, e como electricista não». E desta forma estava dado o mote para um ano lectivo cheio de desafios.
Contra factos não há argumentos, tive que meter as mãos ao trabalho.
Como é que eu vou ensinar O Auto da Barca do Inferno a miúdos que até o nome escrevem com erros ortográficos? Indagava-me eu. (Sim, sim, não estou a inventar, nas primeiras aulas ensinei a um Saúl e a um Nélson que o nome deles tinha acento) O mais curioso é que desafiei-os a confirmar no B.I. e a estupefacção deles foi enorme porque nunca repararam que escreviam incorrectamente o próprio nome. Como é que estes miúdos, com idades compreendidas entre os 15 e os 20 anos, numa turma correspondente ao 9º ano, que falam e escrevem tão mal, têm condições para captar o sentido e descodificar um texto como os supra citados, escritos em português dos séculos XV-XVI?
Miúdos New Age, da linguagem «Telemovelística» e da Net, do «Bué, e do «Tá-se Bem» olhavam para mim como se eu tivesse acabado de aterrar, vinda de outro planeta quando lhes lia aqueles versos.
Apenas os ouvia sussurrar, atónitos, uns para os outros «-O que é que a Chavala disse?
E vá lá, vá lá, o que valeu, não só a mim, como ao pobre Gil Vicente, foi o facto de ter colocado no seu Auto a personagem Parvo, que no meio do seu discurso deixa escapar expressões como «puta da badana»,«furtaste a trincha cabrão», e como esta é uma linguagem que lhes é familiar, eles perceberam na perfeição, a ideia que o autor pretendia transmitir. Pelo menos nesta cena ía sendo assimilada.
Leccionar Os Lusíadas tem sido outra “Odisseia,” do género do clássico Homero, e tal como Hércules vejo-me em trabalhos forçados, na tentativa desesperada de ensinar alguma coisa aos meus projectos de electricistas.
Recentemente fiz um teste ao episódio “Concílio dos Deuses” e numa das questões indagava «Quem é Vénus? Qual a sua função na acção?», um dos cérebros iluminados (ou não fosse ele um futuro electricista) respondeu «Vénus era a deusa do sexo e a função dela era comer os Portugueses».
Imaginem o meu ar quando li aquele comentário. Primeiro reli a resposta pois comecei por duvidar da minha sanidade mental, e depois soltei uma gargalhada porque afinal, o meu formando até ficou com umas ”luzes” relativamente ao que lhe ensinei. Vénus é a deusa do amor, podemos, em última análise, considerar que o sexo também é uma forma de amar, e quanto ao «comer os portugueses» o meu aluno conseguiu criar uma metáfora, exactamente a mesma de Padre António Vieira no seu Sermão de Santo António aos Peixes.
Seria cómico, se não fosse trágico.
Aviso à navegação: estes programas curriculares estão completamente desajustados à realidade dos nossos alunos, deixem os gabinetes, arrumem as gravatas, vejam às escolas de ténis e calças de ganga assistir ao nosso trabalho. Convido-vos a assistir às minhas aulas, a constatar a forma como diversifico as estratégias de aprendizagem na tentativa desesperada de lhes ensinar alguma coisa. Oiçam as vozes dos meus alunos perguntar”-O que é que isso me interessa?”, “Para que é que isso me serve?
Lamentavelmente sou obrigada a concordar com eles, estes programas estão completamente desfasados no tempo, no espaço e da realidade social destes miúdos. Não seria mais útil ensinar-lhes, dentro dos conteúdos da Língua portuguesa a redigir um Curricullum Vitae, uma carta formal, preencher um Requerimento, ensinar-lhes como se devem preparar para uma Entrevista de Emprego, ensinar-lhes a forma correcta de preencher um Formulário e muitos outros conteúdos que se inserem na minha disciplina e que de certeza, lhes poderia ser muito mais útil.
Agora, com o início do terceiro período aguardam-nos novas aventuras…