Cabelo de Algodão Doce
Aguardo junto da estação de comboios pelos meus filhos que regressam da faculdade para um fim de semana de mimo. Observo o cenário à minha volta, a rua está repleta de pais e/ou mães saudosos que aguardam, como eu, pelos seus universitários. Em cada carro há uma pessoa entretida com o seu telefone enquanto esperam, anestesiados pelas realidades pseudo-felizes, daqueles que seguem nas redes sociais. E eis que a minha atenção se prende numa idosa, movendo-se lentamente na minha direção. Cada passo é calculado, possivelmente pelo peso dos anos que carrega ou pelo receio de alguma queda. Tem um ar ternurento, que só as avós possuem e sinto-me tentada a continuar a observá-la. O seu cabelo é de algodão doce, leve, escasso, suave, diferente na cor, branquinho. A sua pele é da mesma cor, marcada pelas rugas que contam histórias da amarguras e momentos felizes que viveu. Os olhos são de um azul-pálido, desbotado, cuja intensidade e brilho também se perdeu com o tempo. Traz um vestido cinzento, de luto longínquo pelo seu companheiro de uma vida, mas sobra-lhe tecido, onde outrora o seu corpo forte o preencheu. Do ombro pende a alça de uma malinha preta, antiga que já fora coquete. Consigo adivinhar o que está lá dentro: a carteira com algumas moedas para ir ao pão e que ao ser aberta revela o retrato do marido, talvez dos filhos e dos netos, as chaves de casa, um lenço de pano antigo onde bordou, a ponto de cruz, as suas iniciais, quando era nova. Vencida pelo cansaço de um caminho que percorre cada vez com mais dificuldade, vi-a sentar-se no banco de jardim perto do meu carro e por momentos os seus olhos cruzaram-se com os meus. É tão bonita…emana de si uma enorme serenidade, uma paz que só se encontra naquele patamar da vida, próprio de quem já nada espera ou tem de encontrar. Desviou o seu olhar do meu para o entregar ao relógio de pulso. (Trouxe-me de volta à minha realidade, são 18h15 e o comboio deve estar a chegar.) O que pensou na informação que os ponteiros lhe deram? Estaria atrasada? Adiantada? Será que espera, como eu, alguém, ou só espera que o tempo chegue derradeiro? Desvia novamente o seu rosto, desta vez vejo-a olhar o horizonte, numa postura de indiferença a tudo o que a rodeia, sem permitir que o barulho da rua, das pessoas a falar a incomodem. Está absorta, perdida em memórias, tudo agora é uma recordação para quem conta mais dias para trás, do que para a frente. Com que lentes olha para esses dias? Terá certamente lembranças repetidas, aquelas que assaltam sem se dar conta. O dia do casamento, do nascimento dos filhos, o aparecimento dos netos, a mesa cheia de saberes e sabores, a toalha imaculadamente branca dos Natais, os pingos de vinho teimosos que a coloriam. Respira fundo. Talvez a saudade lhe tenha apertado o peito e precise de absorver o ar para não se perder no mar de emoções. E lentamente, em câmara lenta surge um sorriso iluminado no seu rosto, não sei para onde olha, pois, uma multidão apeou-se do comboio e parece que vem toda na nossa direção, mas há um rosto que lhe é familiar e que a faz sorrir. Pouco depois chega um rapaz, alto, magro, de braços abertos como quem quer agarrar o mundo (e agarrou). Pegou na senhora ao colo e rodopiou num abraço que a fazia soltar gargalhadas nervosas e felizes. Sinto-me emocionada e o meu aperto no peito é interrompido pelos meus filhos que acabam de entrar no carro. Depois da avalanche de beijos e abraços apertados sigo o meu caminho distraída, o meu pensamento ficou na idosa da estação e no seu neto. Olho para o espelho retrovisor e encho-me de amor pelos meus rapazes, pergunto-me se um dia também me darão um neto que me pegue ao colo e me faça levitar no seu amor.