Via Sacra da Hipocrisia
por aspalavrasnuncatedirei, em 15.07.07
Imagem Retirada da Internet
Tu odiar-me-ás e eu nada poderei fazer, senão sofrer o teu ódio em silêncio, sofrê-lo na carne, como açoites, dilacerando o meu corpo que foi teu tantas vezes, como nunca foi de mais ninguém. Assim vou vivendo sem ti e sem procurar saber de ti. Mas sei de mim, sei do imenso vazio da tua falta, que nada preenche nem faz esquecer. Sei das horas que continuo a atrasar-me no hospital para não chegar cedo a casa. Sei dos desvios que faço para não te encontrar e não deixar que destruas um pouco mais do que se escaqueirou. Sei do jogo cruel dos casamentos, dos baptizados e do Natal em família, isso a que tu chamas “a via sacra da hipocrisia”, sei das horas sem sentido que deixamos para trás. E que interessa, afinal, saber se sou feliz, assim? Por que perguntas sempre isso, quando me encontras? Por que te satisfaz tão fraca desforra, como se a tua sobrevivência já só se pudesse alimentar da minha impossibilidade de ser feliz. E porque não és tu feliz, então? Tu que tens tudo para isso e que és livre, nada te prende e nada deves a ninguém senão a ti próprio? Por que permaneces amarrado a mim como o último marinheiro de um navio velho que nunca mais navegará e que, em lugar de embarcar noutro barco, noutro destino, permanece grudado na ponte de comando inútil, envelhecido com o seu barco, ressequido e amargo? Vive tu. Vive por nós. Não deixes que eu te destrua. Não me deixes mais esse peso. Naveguei até ao cais onde tenciono ficar e morrer, mas evitei o naufrágio em mar alto e não me deixarei afundar aqui, encostada à terra firme.
Não Te Deixarei Morrer, David Crockett, Miguel Sousa Tavares